60
anos após sua morte, Frida Kahlo se renova como mito
A mostra que se despediu
da capital francesa neste final de semana, deixou clara a grandiosidade do
muralista, mas provou que quem comove o público é Frida
Paris se despediu, neste
final de semana, da exposição “Frida Kahlo e Diego Rivera – A arte em fusão”
que, desde outubro, vinha arrebanhando milhares de fãs do casal número um das
artes plásticas mexicana até o Museu de L´Orangerie, nos Jardins de Tuileries.
Os números oficiais ainda estão por ser divulgados, mas ninguém tem dúvidas de
que a exposição será a recordista de público das últimas temporadas: mesmo os
franceses, que evitam a todo custo os locais turísticos superlotados, enfrentaram
as filas de acesso à mostra, que duravam em média duas horas, sob sol, chuva e
temperaturas muito baixas.
Diego Rivera (1886-1957),
claro, tem luz própria. Em seu tempo, retratou a paixão revolucionária e
internacionalista, ao apresentar ao mundo uma visão do proletariado como
protagonista da sua história. A solidez de sua obra o transformou em um dos
mais reconhecidos artistas plásticos.
Entretanto, embora os organizadores aleguem que o diferencial da mostra
é justamente unir a arte do casal, ninguém tem dúvidas de que Frida Kahlo
(1907-1954) é quem sustenta o mito capaz de comover fãs de perfis e
nacionalidades tão diversas.
É um dos seus famosos
autorretratos que ilustra o cartaz promocional da exposição. São suas obras que
vendem como água estampadas em camisetas, imãs de geladeira e souvenirs de toda
espécie pela cidade. Nas livrarias francesas, são as várias versões de sua
biografia que ocupam lugar de destaque nas vitrines.
É a edição do fac símile
de seu diário que estimula a cobiça dos fãs. Se a exposição deixa uma certeza,
é a de que, mesmo 60 anos após a morte do ícone mexicano das artes, da esquerda
e do feminismo, o fenômeno da “fridolatria” continua vivo, forte e em ascensão.
A resposta para a
supremacia de Frida sobre Diego no gosto do público pode estar em sua
trajetória. Filha de um fotógrafo judeu que trocou a Alemanha pelo México, ela
enfrentou a poliomielite aos 6 anos, teve o corpo destroçado por um acidente de
automóvel aos 18, e vivenciou com intensidade o infortúnio da dor após se casar
com Rivera, reconhecido conquistador que traiu não só a esposa, mas também o
Partido Comunista e suas diretrizes políticas. Nem a própria irmã de Frida,
Cristina Kahlo, escapou das teias do homem com quem a artista foi casada por 25
anos.
Frida também amargou a
frustração de não poder gerar um filho: em função das sequelas do acidente, foi
obrigada a abortar sucessivas vezes. Sua biografia registra que, ao longo da
vida, ela passou por pelo menos 27 cirurgias. A primeira internação foi para
curar a poliomielite. A última, pouco antes de morrer, para amputar a perna
direita, que começava a gangrenar. No seu diário, ela desenhou os pés
desgarrados do corpo, com a legenda: “pés para que os quero se tenho asas para
voar”.
Apesar da deficiência
física e das dores dilacerantes, ela também teve uma vida sexual bastante
agitada e atípica para sua época, o que a fez galgar o posto de ícone do
feminismo mexicano. Foram inúmeros casos, antes e após o casamento, inclusive
homossexuais. O mais célebre, e o que coroou seu envolvimento com a paixão
proletária e a revolução comunista, foi com o líder russo Leon Trotski, que se
hospedou na sua residência, a famosa Casa Azul, enquanto viveu exilado no país.
Mas a diferença entre as
artes de Diego e Frida também pode explicar muito sobre o mito que ela se
tornou. Enquanto ele retratou, ainda que com vigor especial, as paixões
revolucionárias de sua época, emolduradas pelo muralismo que dominava o México,
Frida encontrou um estilo único e fez da sua arte uma espécie de exorcismo:
pintou a paixão pela cultura popular mexicana e pela revolução, mas também
expôs seus infortúnios, dores, desgraças, abortos, tristezas, desconsolos.
Tal como Diego, revelou em
suas telas seu tempo histórico. Mas, ao contrário dele, exibiu também suas
vísceras.
Em 1938, após expor em
Nova York, Frida soube que André Breton a classificara como surrealista em
ensaio que correu o mundo. Não hesitou em corrigi-lo:
“Pensavam que eu era uma
surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria
realidade”. Nos atuais livros de história da arte e nas muitas biografias
lançadas e relançadas nos últimos anos, ninguém mais se arrisca atrelá-la a
nenhuma corrente. Sua arte se sobrepôs às correntes.
A mostra do L´Orangerie
reuniu cerca de 30 obras de cada um dos dois amantes, amaioria delas
provenientes do Museu Dolorès Olmedo, do México, e algumas inéditas na capital
francesa, onde a última exposição de Frida havia ocorrido há 15 anos. Na
primeira sala, telas da juventude de Diego, como “A noite na Vila”, de 1907, se
impunham em meio às reproduções dos seus grandes murais que sobrevivem em
prédios públicos do México e, também, dos Estados Unidos. Entre eles, chamava a
atenção o que Diego retratou Frida entregando armas a camponeses mexicanos.
A sala seguinte exibia as
primeiras telas que Frida pintou ainda no hospital, durante a longa recuperação
do acidente, e nos anos seguintes, quando arrematou seu estilo: retratos de
familiares e amigos, como o da irmã Cristina, que se envolveria mais tarde com
o seu Diego. Havia também obras de pegada mais social, como a expressiva e
pouco conhecida “O ônibus”, de 1929.
Na terceira e principal
sala, perfilavam-se obras de Frida e Diego, lado a lado. E, neste caso, ele
saia em visível desvantagem. Era neste ambiente que se encontravam alguns dos
mais famosos autorretratos da artista que, segundo o Le Monde, alcançam, hoje,
cifras tão altas quanto à Monalisa, de Leonardo Da Vinci.
Entre eles, o visceral “A
coluna partida”, de 1944, o seu quadro mais conhecido e celebrado pela crítica.
E também o sensual “Autorretrato com vestido de veludo”, de 1926, a obra que
ilustra os materiais promocionais da mostra.
O próprio fenômeno da
“fridolatria” ganhou espaço na exposição, com a recuperação do quanto a
mexicana influenciou e ainda influencia não só o pensamento, mas também a
música, o cinema, a literatura, o designer, a moda.
Há referências, por
exemplo, ao filme “Frida”, sucesso de público de 2002 até hoje, em que ela é
interpretada por Salma Hayek e Diego, por Alfred Molina. E também ao espartilho
desenhado por Jean Paul Gaultier, sob sua inspiração.
Na loja do Museu, mais filas.
O público queria levar para casa não só o catálogo da exposição e toda sorte de
livros sobre a vida e a obra da artista, mas também souvenirs que o aproximava
do ícone. Réplicas das roupas, colares, lenços e bolsas da mexicana faziam
surpreendente sucesso entre fãs de todas as nacionalidades. Paris se transformava toda ela em Frida
Kahlo.
Fonte:
CartaMaior
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