O guri e o prazer de ler
Letícia Möller
É tempo de volta às aulas,
e o guri se depara com o que o aguarda no ano letivo. Conteúdos, projetos,
trabalhos, leituras obrigatórias. Os livros novos, com suas capas flamantes e
cheirinho de recém-impresso, o encaram em pilhas sobre a mesa.
Os livros, que anos antes
faziam o guri perder o sono de excitação e entusiasmo, e alisar as capas e
espiar as páginas imaculadas, agora o intimidam. Antes objetos mágicos, a
convidar a um mundo interessante a ser descoberto, agora apenas acenam com
longas horas de tédio e aborrecimento.
Ele já sabe que ouvirá,
também este ano, a clássica ladainha que não produz efeito, tantas vezes
repetida: É preciso ler!
E, se algum efeito produz,
não é certamente aquele desejado por pais e professores cheios de boas
intenções. A Importância da Leitura, e mesmo o tão incentivado Prazer de Ler,
quando enfiados goela abaixo encontram no guri um desertor - ou, na melhor
hipótese, um leitor de cara amarrada.
É preciso ler! Para não
ser ignorante. Para ser alguém na vida. E não só. É preciso ler e é preciso
entender o que o autor (esta entidade enigmática) quis dizer. E saber o que a
professora quer que ele entenda que o raio do autor quis dizer. E mostrar que
entendeu na Ficha de Leitura.
Não é exatamente um apelo
irresistível, nem canto sedutor de sereia. Quase inescapável que o guri verá a
leitura como fardo, pura obrigação, tempo perdido por ser (assim ele pensa) um
ato desconectado de si, privado de um sentido que lhe importe.
Daniel Pennac, em ensaio
encantador intitulado Como um romance (L&PM), questiona a importância da
leitura como dogma, e convida a que pais e professores partilhem, com paixão, o
seu próprio prazer de ler. Uma ideia simples, mas com potencial revolucionário:
“e se, em vez de exigir a leitura, o professor decidisse de repente partilhar
sua própria felicidade de ler?”.
Claro é que os professores
enfrentam certas limitações na autonomia de ensino, não podendo desconsiderar a
bel prazer a exigência de leituras obrigatórias e avaliações. E talvez não seja
isso, pura e simplesmente, nem desejável. Mas se houver, em sala de aula, um
espaço, uma hora, vinte minutos numa sexta-feira que seja, para o professor
partilhar com seus alunos a sua paixão pela leitura, falar de seus livros e
autores favoritos e, fantástico, ler o primeiro capítulo de livros que ele tem
motivos para imaginar que falarão, de fato, à emoção e às entranhas de seus
guris e gurias, isso, sim pode angariar apaixonados pela leitura.
A gratuidade dessas
leituras compartilhadas, quando nada é exigido (nada de perguntas, nada de
fichas), quando não há o medo de não compreender, de não estar à altura do
livro, essas leituras-presente, como as chama Pennac, e que podem ser feitas
por pais e professores – têm grandes chances de romper barreiras, chamar de
volta desertores e desfazer as caras mais amarradas. Do prazer gerado por essas
leituras compartilhadas (em casa, na escola) virá o prazer solitário da escolha
do seu livro, da leitura calada, secreta, só sua. E o que o autor quis dizer
não será uma atividade assustadora de extração de sentido, mas um diálogo e um
reconstruir subjetivo e livre.
Assim o espero e desejo,
nesta noite fresca de março.
Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br
Letícia Möller nasceu em Porto Alegre,
em 1979. É autora dos livros infantis “Eu e você, aqui e lá!” (2010) e “Corre,
Pedro, corre!” (2011), ambos pela WS Editor, além de livros e ensaios sobre
direito e bioética. Também é advogada atuante, graduada em Direito pela PUCRS,
mestre em Direito pela Unisinos e Doutora pela Università degli Studi del
Salento, em Lecce/Itália. Sites: leticiamoller@yahoo.com.br - www.efemerasletras.blogspot.com
- www.loveolivro.blogspot.com
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