Sutiã de renda
A idade só se aplica às pessoas vulgares
Hermann Hesse
Comprou o sutiã preto de
renda com a respiração suspensa. Finalmente. Tinha esperado o mês inteiro pelo
dinheiro mirrado da aposentadoria para poder satisfazer aquele desejo. Passava
todos os dias em frente à loja, em suas caminhadas para esticar as pernas,
rezando para que a peça ainda estivesse lá quando pudesse comprá-la. Agora,
abraçando a sacola decorada com a foto de um passarinho, não economizava o
sorriso. Naquele mês, teria que optar entre o remédio de pressão e o do
diabetes, mas ninguém precisava saber disso. Nem os filhos que nunca a
visitavam, nem o médico ao qual só iria dali a um mês. Talvez fosse ao posto de
saúde para pegar uma cartela daqueles remédios fracos que mal faziam efeito.
Melhor que nada. Mas iria depois.Andava se sentindo muito bem para se
preocupar com isso.
Apressando o passo,
esqueceu as doenças e o dinheiro gasto, e chegou ao pequeno apartamento de
quarto e sala em cima da padaria. A escada a cansou um pouco e ela tomou um
copo d'água gelado. Deixando sobre uma cadeira a sacola de passarinho, abriu o
armário acanhado, retirando de lá um vestido preto com decote em V, que depositou sobre a cama. Voltou ao
armário, pegando, dessa vez, uma caixa branca quadrada, que colocou sobre uma
poltrona. Pegando toalha e roupão no varal, entrou no banheiro. Demorou o dobro
do tempo sob a água morna do chuveiro. No mês seguinte a luz viria mais cara,
mas ela não se importaria com a cara feia dos filhos, que insistiam em lhe
pagar o aluguel e a bendita luz. E eles repetiriam tudo o que ela já sabia. Que
uma senhora de 74 anos não devia morar sozinha. Que num espaço de conveniência
para idosos haveria alguém para cuidar dela, e pessoas com quem conversar. Ela
não queria conversar. Se quisesse falar com gente velha, conversaria sozinha.
Gente velha é só lembranças tristes. Pessoas que já morreram, sonhos que já
morreram, lugares e coisas que não existem mais. Gente velha é mórbida,
antecipando o inevitável com os olhos marejados, com uma resignação doentia.
Morrendo antes da morte. Ela, não. Ela ainda estava viva, bem viva. Por isso,
nada de abrigos disfarçados por nomes bonitos. Preferia o quarto e sala
reduzido de onde via os carros e as pessoas na rua, dia e noite, e de onde
ouvia o entra e sai da padaria. O cheiro do pão fresco sendo feito de manhã bem
cedo a estimulava a sair da cama para viver. Viver o que fosse, o que desse,
sem presságios ou receios.
Logo que aquele aroma
delicioso começava o dia, Jussara, a mocinha que trabalhava no balcão da
padaria, tocava a campainha para lhe entregar dois pãezinhos de sal. Antes
mesmo de atender os primeiros clientes. Perguntavam uma à outra um como vai
sincero, os pães eram pagos e as duas se despediam. Até que o fim de tarde
chegava e um outro encontro se repetia, nos mesmos moldes.
No início, assim que
Jussara se ofereceu para ajudá-la, ela a convidou a acompanhá-la no café. A
jovem agradeceu e recusou. Na padaria, tinha de graça não somente o café e o
pão, mas bolos, biscoitos, queijos e outros frios que o patrão liberava para
todos os funcionários. Demorou um tempo para ela descobrir como retribuir a
gentileza dos pães em domicílio. Mas, uma tarde, abriu a porta com as agulhas
de tricô na mão; um suéter que terminava para um neto, mesmo sabendo que ele
não o usaria. Jussara não tinha um suéter feito à mão. E ela soube o que dar
àquela quase menina de rosto redondo. Quanta luz nos olhos que abriram o
presente. Uma surpresa honesta, um meu Deus, que lindo vindo de algum lugar
sincero entre a alma e os lábios. Ficaram amigas.
Saindo do banho prolongado,
secou e penteou os cabelos lentamente. Pegou um par de meias finas e uma
cinta-liga na segunda gaveta do criado mudo, em meio a umas poucas peças de
lingerie. Nunca conseguira usar meias-calças. Muito ásperas. Colocou a
cinta-liga com a destreza das mulheres experientes e esticou cada pé de meia
até que as pernas lhe pareceram bem lisas. Fechou o sutiã novo, regulou as
alças e ajeitou os seios dentro dos bojos de renda, feliz com o resultado.
Vestiu-se. Em seguida, retirou da caixa branca um par de sapatos pretos de bico
fino e salto médio, uma caixa de joias de madeira, forrada com cetim lavrado, e
uma máquina de retratos pequena e moderna, presente de Natal dos filhos.
Tirando da caixa de joias colar e brincos de pérola, colocou-os. Calçou os
sapatos, admirando-os por uns segundos. Passou um batom vermelho e massageou as
mãos com um pouco de creme. Três borrifadas longas de Shocking de Schiaparelli
no corpo, e uma rápida nos cabelos. Por fim, examinou-se demoradamente no
espelho grande que mandara instalar atrás da porta do quarto. Sorriu.
Às 19h 30, como sempre,
Jussara tocou a campainha. A seu pedido, a mocinha arrumou rapidamente a mesa
de jantar solitária, deixando sobre a pia da cozinha a ceia de Ano Novo
antecipada em um dia. No dia seguinte seria 31 de dezembro, e ela teria que
cumprir a obrigação de ir para a casa de um dos filhos. Mas, antes da
obrigação, o prazer. Despediram-se com uma troca de beijos nas bochechas. As de
Jussara, cheirando a frituras e pães. As dela, cheirosas com o perfume importado.
Assim que ficou sozinha,
buscou no armário da cozinha mais um prato, mais um jogo de talheres e duas
taças de cristal insuspeitamente escondidas ao fundo. Quando a mesa ficou a seu gosto, fotografou
tudo. Depois, esticou o braço, ajeitou o corpo e tirou de si mesma várias
fotos. Selfies, lhe ensinara o neto
metido. Então, a campainha tocou novamente. Ela respirou, ajeitou o vestido no
corpo e abriu a porta para uma daquelas noites arrebatadoras que vinha tendo
fazia mais de um ano. Olhando o parceiro daquela noite estourar o champanha que
trouxera consigo, ela pensou no sutiã de renda. E sentiu o tanto que ainda
estava viva. Bem viva.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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