As mulheres e a ficção: livro de Virginia Woolf ganha nova tradução [Clayton de Souza]
Concomitante a esse plano enunciativo, onde acompanhamos a gestação da tese, entre digressões coesas e intervenções externas, temos o plano “presente”, quando Woolf dirige-se a sua plateia, instando-a a refletir. De início, o tema da palestra se revela “um prisma” através do qual muitos caminhos se tornam possíveis:
As mulheres e a ficção poderia significar (…) as mulheres e como elas são, ou as mulheres e a ficção que elas escrevem, ou poderia significar as mulheres e a ficção escrita sobre elas (…)
Esse trecho estrutura o livro em suas partes, revelando-lhe a abrangência. É, por exemplo, da opinião (e dissenso) de historiadores, de sábios como Goethe e figuras como Mussolini que trata o segundo capítulo. Se há alguma verdade no que diz respeito à problemática feminina, não são os homens que a poderão fornecer, suas visões impregnadas de narcisismo, recalque, idealização ou complacência.
Tampouco as criaturas femininas tão vivas nas peças de Shakespeare viabilizam alguma luz, em face do contraste que há entre elas e as que, sob o regime patriarcal elizabetano, viviam de tal maneira em desigualdade com os homens que a célebre hipótese da irmã do Bardo é aventada no capítulo três.
O caminho para a questão “As mulheres e a ficção” centra-se então na figura autoral feminina. Lançando mão de sua erudição e de remissões históricas, Virginia Woolf investiga, dentro da tradição literária inglesa, os inícios da relação mulher/escrita, das produções de Lady Winchilsea, de Margaret de Newcastle e outras escritoras de menor expressão, passando pelo grande quarteto Jane Austen-Emily Brönte-Charlotte Brönte-George Eliot, até chegar a Marie Carmichael.
Sem dúvida esta é a medula do livro, porque é dos desníveis estéticos observáveis entre as autoras que Woolf solidificará a ideia de preeminência estética como emancipação feminina; emancipação mais efetiva que “o ‘feminismo notório’ de Rebecca West”, que se aplicado à ficção e à poesia redunda em literatura ressentida, tão distante da escrita “desimpedida” de Shakespeare e Austen.
Mas há um preço a se pagar para que esta preeminência seja alcançada e o desenvolvimento espiritual da escritora se efetive, e este não poderia ser mais material: uma pensão mensal e um cômodo particular. Literatura de fibra não pode ser produzida em meio a passos intrusos, ou com uma exígua experiência mundana. Alguns podem relembrar Camões e outros infortunados escritores a quem a miséria não obstou a manifestação do gênio, porém, mesmo o menos favorecido teve acesso a uma educação basilar que, durante muito tempo, foi negada às mulheres. Em suma: das contingências mais materiais se extrai as condições que dão vazão ao trabalho espiritual do artista, como o ócio produtivo e o “enclausuramento” que escritores como Proust tornaram célebre.
E não seria, enfim, a imortalidade literária o remate ideal para a repressão social, bem como para a estreiteza literária que apequenou a escrita de tantas autoras seminais?
Eis aqui porque Virginia Woolf, através de uma escrita irônica e rigor de ideias, não incorre em sectarismo ou complacência em Um teto todo seu; mais: conseguiu marcar com tintas indeléveis seu nome no cânone mundial.
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Clayton de Souza é escritor, autor do livro Contos Juvenistas. Reside atualmente em São Paulo (SP).
Fonte
Sul21
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