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LP Cartola 1976 |
Cartola, sua filha cantora
e o mundo dos mesquinhos
Sidnei Schneider
Após receber nova mensagem
apócrifa sobre Cartola, na qual se afirma que sua filha teria sido prostituta,
e tendo a percepção de que é incorporada como verdadeira por quem menos se
espera, retomo mais uma vez a refutação dessa maledicência, associada
indevidamente à letra de uma de suas mais belas canções, a célebre O mundo é um
moinho.
Ver prostitutas onde elas
não existem diz muito da psiquê inconfessável, da consciência prostituída e do
ranço colonial dos que se dão ao exercício de inventar essas lorotas.
Repassadas, na menos terrível das hipóteses, por quem não sente a menor
desconfiança ante o que é apenas estúpido racismo e sentimento antipovo, ou, o
que dá no mesmo, sem ter a mínima noção de que ao repassá-las se expõe ao
ridículo, são úteis apenas a quem deseja o povo brasileiro eternamente dividido
para melhor subjugar o país.
“Escutar é complicado e
sútil”, anotou certa vez o escritor Rubem Alves, ele mesmo relembrando Alberto
Caeiro, “Não é bastante não ser cego/ Para ver as árvores e as flores.” Na tal
mensagem, a reprodução da letra de O mundo é um moinho vem antecedida por este
brinco de erudição e amor ao povo, em destaque e sublinhado: "Cartola fez
esta música quando soube que sua filha era prostituta".
LEITOR DE POESIA
Antes de esmiuçar a
questão, e já solicitando a licença de quem aguarda o seu desenvolvimento,
talvez fosse interessante examinar outra inverdade. Volta e meia alguém diz que
Cartola era analfabeto, pretendendo que, assim, estaria enaltecendo ainda mais
sua criatividade enquanto letrista e músico. De variadas profissões ao longo da
vida, entre as quais a de pedreiro e funcionário público, Cartola viu-se na
contingência de trabalhar como lavador de carros e vigia de prédio numa época
difícil, quando, mesmo já compositor de renome, chegou a ser dado como
desaparecido ou morto, mas nem por isso era analfabeto. Se existiram, e talvez
possam ainda existir, compositores e poetas sem letramento, por que tanta
insistência no que não é verdade? Por que uma pessoa de origem humilde (não soa
precisa essa última palavra, mas vá lá) e pele escura teria necessariamente de
ser analfabeta?
Herdeiro da tradição do
samba e do choro, entre outros gêneros, Cartola era leitor de poesia. Para além
das letras da mais alta inventividade que o precederam ou acompanharam, como as
dos seus amigos Noel Rosa, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti, importa aqui saber o
que lia em livro esse suposto analfabeto. Em entrevista ao crítico musical
Tárik de Souza, em novembro de 1974, revelou o que fazia para compor: “Eu não
tinha interesse nenhum por leitura. Mas um dia, quando eu estava mais ou menos
com 25 anos, um primo me deu um livro de poesias de Humberto de Campos e eu
gostei muito e passei também a ler Castro Alves e Guerra Junqueiro. Tem letras
que vêm quase prontas. Outras vêm só com um pedacinho. Ponho num rascunho e
guardo num canto até vir a inspiração. Prefiro fazer pouco mas fazer bem”.
Tárik, que entrevistou Cartola diversas vezes, deu posteriormente um depoimento
ao programa De Lá Para Cá, da TV Brasil: “Ele lia e citava Castro Alves e [o
poeta português] Antero de Quental, era um aficcionado da poesia brasileira”.
Os pesquisadores Marília
Barboza da Silva e Arthur de Oliveira Filho, no livro Cartola: os tempos idos
(Gryphus, 2003), anotam: “A instrução oficial de Cartola resumiu-se ao curso
primário, muito bem feito. A vida, porém, encarregou-se de completar-lhe a educação,
fazendo-o ler poetas como Castro Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac, pessoas
como Carlos Cachaça, Aluízio Dias, Noel Rosa, Carmem Miranda, Silvio Caldas e
Villa-Lobos”. A tese de mestrado da neta de Cartola e Dona Zica, Nilcemar
Nogueira (filha de Glória Regina), De dentro da cartola: a poética de Angenor
de Oliveira(FGV, 2005), acrescenta à lista de poetas o nome de Luís de Camões e
revela ser Guerra Junqueira o seu autor preferido. A canção “Verde que te quero
rosa” (Cartola e Dalmo Castelo), que daria título ao LP de 1977, dialoga com
versos de Federico Garcia Lorca: “Verde que te quero verde./ Verde vento.
Verdes ramas”. Ronaldo de Oliveira, filho adotivo de Cartola e Zica,
entrevistado por Mônica Ramalho em 2002 para a pesquisa do musical Obrigado,
Cartola!, declarou que ele “Podia não ter dinheiro para mais nada, mas não
abria mão do jornal” (com o que não se deve concluir, evidentemente, que
assimilasse sem crítica qualquer coisa que os jornais dissessem, muito pelo
contrário, sem destacar que, em certa época, a leitura pudesse ser a do jornal
Última Hora, de Samuel Wainer, mais comprometido com os interesses nacionais e
democráticos).
Além de ler a melhor
poesia que estava ao seu alcance, era artista atento à complexidade do mundo,
em constante exercício quanto a sua arte e seu instrumento, pois só de
antecedências, mesmo que poéticas e musicais, ninguém realiza nada que
permaneça. Então, de onde vem essa ideia de um Cartola analfabeto, se esse
lavador de carros era mais letrado na complexa arte da poesia, como se pode
facilmente presumir, do que seus detratores e supostos defensores? Um sujeito
pobre e preto não poderia ter levado adiante, no mais alto grau, além de toda a
história do samba, a tradição poética e letrada do país no campo da canção
popular? Teria que ter lhe caído por de cima, sem qualquer esforço e aplicação,
como efeito de mágica ou milagre? Por quê?
HISTÓRIA DE CREUZA
Quanto à inverídica
prostituição, para começar, Cartola não gerou filhos, embora tenha criado os de
Deolinda e Dona Zica, adotivos ou não. Nascido Angenor de Oliveira, ele e
Deolinda, sua primeira esposa, adotaram Creuza Francisca dos Santos
(1927-2002), nascida no Morro da Mangueira, filha de Rosa do Espírito Santo e
Agenor Francisco dos Santos, e futura vítima da peçonhenta aleivosia. Estes, os
pais biológicos, eram amigos de Cartola e Deolinda, sendo esta última madrinha
de batismo da menina. Quando Rosa, a mãe, faleceu em 1932, Creuza tinha apenas
cinco anos, e Deolinda e Cartola, juntos há sete naquela época, ficaram com
ela. Artista precoce, Creuza começou a cantar aos 14 anos, acompanhando Geraldo
Pereira, outro grande compositor de Mangueira, em apresentações na Rádio
Nacional, nas quais também cantava músicas de Cartola, que a levava e ensaiava.
Assim, a menina aprendeu composições que mais tarde, com a morte do pai,
resgataria da memória, inclusive várias inacabadas. Por essa época, integrou
enquanto corista o grupo As Gatas, que acompanhava Herivelto Martins. Na década
de 1960, apresentou-se ao lado de Cartola em shows na Boate Jogral (Ribeirão
Preto-SP), no Zicartola e no Teatro Opinião (RJ), e também cantou ao lado de
Genaro da Bahia.
Creuza tornou-se cantora
(e não prostituta!) e participou da gravação do LP Cartola, o segundo com o
mesmo nome, lançado pela Discos Marcus Pereira em 1976, hoje disponível em CD,
no qual está a canção O mundo é um moinho. Em dueto com Cartola, ela interpretou
“Ensaboa” (Monsueto e Cartola) e “Sala de Recepção” (Cartola). Em 1982, a
gravação de "Ensaboa" foi inserida no disco "História da música
popular brasileira" relativo a Cartola, vendido em bancas de revista, e, a
partir de 1998, o registro de “Sala de Recepção” correu mundo enquanto tema
final do filme Central do Brasil, de Walter Salles.
Em 1984, quatro anos após
o falecimento do pai, ela participou do LP Cartola entre amigos, com várias
composições inéditas de Cartola. Creuza cantou a inédita "Rolam dos meus
olhos" (Cartola) e integrou o coro nas faixas "Não" (Cartola e
Aluízio Dias), "O samba do operário" (Cartola, Alfredo Português e
Nelson Sargento) e "Deus te ouça" (Cartola e Paulo da Portela). Em
1986, o compositor e violonista Aluízio Dias fundou a Velha-Guarda da Mangueira
e a convidou. Ao lado de Dona Neuma, Tia Zélia, Soninha, Zenith, apresentava-se
regularmente na quadra da escola. No CD Mangueira chegou (Japão, 1989/ Brasil,
2000), interpretou a inédita "Pedi perdão" (Cartola) e, em dueto com
Aluízio Dias, "O amor é isso?" (Aluízio Dias e Cartola). Em seu
último show, como integrante da Velha-Guarda da Mangueira, na Sala Funarte
Sidney Miller, apresentou duas inéditas de Cartola: "Serviço de roça"
e "Por motivos de força maior", ambas finalizadas pelo filho Reizilan
dos Santos, neto de Cartola. Em 2002, após seu falecimento, foi relançado em CD
Cartola entre amigos. (Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira)
O MUNDO É UM MOINHO
Ao denunciar a mentira,
Irinéa dos Santos, a mais velha dos cinco filhos de Creuza, disse que Cartola
compôs O mundo é um moinho ao refletir sobre o que reservaria a vida para
Creuza, então uma menina de 16 anos, que passava a se interessar pelos rapazes.
Preocupações de qualquer pai em relação a sua filha, às quais é preciso somar a
noção de liberdade artística. Cartola, igual a qualquer compositor, devia
interessar-se pelo que a canção podia dizer aos outros, os seus ouvintes, e
jamais a reduziu à situação doméstica. Visto que relevante é a maneira como
cada ouvinte se apropria da canção, tornando-a pertinente à sua vida e
experiência, e eu nem relataria o que relatei não fosse a necessidade de
refutar algo tão ignominioso. O poeta e abolicionista Cruz e Sousa, no livro
Faróis, ao antever as dificuldades do seu rebento na sociedade escravocrata,
produziu algo de tom similar no poema “Meu Filho”: “Minh’alma se debate e vai
gemendo aflita/ No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:/ Que esse tão pobre
ser, de ternura infinita,/ Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!”
Coloque-se o leitor no
lugar dos filhos e netos de Creuza e Cartola, da população negra do nosso país,
dos menos aquinhoados de qualquer descendência, que verá melhor, se acaso não
for de um desses contingentes, a gravidade e a dimensão da ofensa perpetrada.
Num vídeo disponível na
rede, recorte do documentário Cartola, música para os olhos, dirigido por Lírio
Ferreira e Hilton Lacerda (2006), pode-se ver Cartola, acompanhando-se ao
violão, cantar O mundo é um moinho a pedido do pai, que não via há anos
(“Cartola e seu Pai - O Mundo é um Moinho” está com mais de 1,838 milhão de
visualizações no YouTube). Suponho que, se Cartola soubesse do epíteto de
analfabeto, além de agradecer, declinando de tão honrosa Titulação Acadêmica,
talvez até explicasse que um compositor popular ou negro não precisa ser
iletrado nem forçadamente pobre o tempo inteiro: aos 70 anos, perto do final da
sua existência, ele pôde desfrutar, com muito orgulho, de algum conforto na
casa de Jacarepaguá e adquirir um automóvel, que um familiar conduzia. As
dificuldades da vida, porém, o maltrataram tanto, que em certos ângulos do
vídeo, filmado bem antes dessa conquista, ele parece mais velho do que o
próprio pai. É, gente assim, sensível para a arte e os outros, e dura o suficiente
para prosseguir com a vida, deve mesmo despertar a ira, a inveja e a
maledicência de certos espíritos.
O MUNDO É UM MOINHO
Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a
vida
Já anuncias a hora de
partida
Sem saber mesmo o rumo que
irás tomar
Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás
resolvida
Em cada esquina cai um
pouco tua vida
Em pouco tempo não serás
mais o que és
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é
um moinho
Vai triturar teus sonhos,
tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a
pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás
só o cinismo
Quando notares estás à
beira do abism
Abismo que cavaste com
teus pés
(Cartola)
SIDNEI SCHNEIDER é poeta, contista e tradutor. Publicou
os livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer,
1999), a tradução Versos Singelos-José Martí (SBS, 1997) e o volume de contos
Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, 2001), Antologia do Sul (Assembleia Legislativa,
Porto Alegre, 2001), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis,
2011) e de mais de uma dezena de antologias. 1º lugar em poesia no Concurso
Talentos, UFSM (1995), 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu,
UFRGS (2003) e outras premiações. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.
sidneischneider@gmail.com
4 comentários
Sensacional!
Muito boa explanação sobre Cartola! Fatos que devem ser desconhecidos de muitas pessoas!
Muito bom!
Que maravilha de texto
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