FLIP - uma festa da
literatura ou do deus mercado?
A XII Festa Literária
Internacional de Paraty (FLIP), que acontece de 30 de julho a 3 de agosto, não
apresenta nenhuma surpresa. Num ano marcado pela Copa do Mundo e pela intensa
disputa eleitoral, o evento repete a mesma fórmula das edições anteriores, privilegiando
autores consagrados.
Por Claudio Daniel
Desta vez o homenageado
será Millôr Fernandes, falecido em 2012 — e nomes ligados às grandes editoras e
à mídia, como é o caso da atriz e colunista do jornal Folha de S. Paulo
Fernanda Torres, que publicou o livro Romance em dois atos pela Companhia das Letras.
Os convidados internacionais da feira também obedecem ao mesmo roteiro: neste
ano, vem ao Brasil o israelense Etgar Keret, autor de best-sellers como De
repente, uma batida na porta, que será publicado em breve pela editora Rocco. A
vinda do autor para a feira, sem dúvida, será uma ótima ação de marketing para
a venda do livro, já anunciado na Folha. Além do israelense, virão também a
jovem autora neozelandesa Eleanor Catton (vencedora do Man Booker Prize em 2013
pelo livro The luminaries), o suíço Joel Dicker, o jornalista norte-americano
Andrew Solomon e quatro prosadores latino-americanos: o chileno Jorge Edwards,
o mexicano Juan Villoro, o peruano Daniel Alarcón e a argentina Graciela
Mochkofsy.
A associação da FLIP com
as grandes editoras e veículos de comunicação há bastante tempo tem motivado
críticas de intelectuais e escritores brasileiros, que apontam uma inclinação
da feira em direção ao mercado, em detrimento da qualidade, da variedade de
estilos e da inovação estética.
Marcelo Mirisola, autor de
romances como O azul do filho morto, já em 2006 escreveu em seu blog um
virulento depoimento sobre a FLIP, apontando o “mundo das letras” como uma
“máquina de fazer dinheiro”, em referência explícita ao Unibanco (incorporado
em 2008 ao Itaú), um dos patrocinadores da feira. A professora e ensaísta Leda
Tenório da Motta, outra notória contestadora do evento, em artigo publicado em
2007 no site de literatura Cronópios, escreveu: “Não é bem literatura o que se
consome, todo ano, em Parati. São mitos. Para vender livros. O mainstream
editorial sabe disso. Fora isso, convenhamos: diante de tanta avalanche de
aplausos e autógrafos, entrevistas e campeonatos de melhor performance,
melhores eram os tempos em que se expulsavam os poetas da cidade”.
E hoje, o que pensam os
poetas, ficcionistas e intelectuais brasileiros sobre essa “festa” literária –
que anualmente leva milhares de brasileiros à simpática cidade carioca? Para
Ricardo Corona, poeta, performer e editor de revistas literárias que marcaram
época, como Medusa e Oroboro, “não há literatura sem crise. E há, nestes
eventos, comumente, acordos, ou melhor, conchavos para submeter visões do
literário à homogeneização da linguagem. A partir daí, surge a literatura com L
maiúsculo, que comove plateias, que faz coro com a mídia que nada sabe falar a
não ser falar, e mesmo assim, fala porque há no evento investidores que são
também anunciantes. Não sem razão, estes eventos de Literatura são controlados
menos por autores do que por editores, agentes literários e diretores de
bibliotecas públicas. Eventos assim me fazem crer que editores escrevem por
meio de seus éditos; que participam de eventos literários por meio de seus
éditos e tudo não passa de uma performance bem lucrativa”.
Para Márcia Costa,
pesquisadora cultural e autora do livro De Pagu a Patrícia: o último ato, “cada
vez mais as lógicas midiáticas têm afetado o campo artístico e vice-versa, onde
ocorrem interesses, negociações, disputas e interrelações, muitas vezes
influenciadas por condições econômicas e políticas, como é o caso da FLIP, cuja
agenda é definida muito por conta da influência do mercado literário. Não à
toa, a feira elege como convidados escritores consagrados alçados ao patamar de
estrelas e autores de livros que integram as grandes editoras, uma fórmula para
atrair público para o evento, os olhares da mídia, e, consequentemente, grandes
patrocinadores. Ao difundir um determinado tipo de literatura, o sistema
literário (composto pela FLIP, o mercado literário, os críticos literários e a
mídia, entre outros) define o que considera arte, os escritores e suas obras
ganham visibilidade, e tem-se legitimada determinada produção. Resta ao público
identificar criticamente este processo e lutar para ter acesso a uma produção
literária que não é refém dos processos de midiatização e que sobrevive à parte
de um sistema excludente de difusão artística”.
A poesia entra pela porta
dos fundos
Existe poesia na FLIP?
Claudio Willer, poeta,
tradutor e ensaísta, um dos principais divulgadores do surrealismo e da poesia
beat no Brasil, considera que “encontros de autores com o público podem ser
produtivos. Estimulam leitores. Um dos benefícios colaterais da FLIP: a
imprensa dar atenção a iniciativas semelhantes, como a jornada de Passo Fundo,
que existe há décadas. Preferiria, porém, que a poesia tivesse lugar central,
assim como em outros países: se dá certo em Caracas e Medellín, que promovem
festivais enormes e substanciosos, também pode dar aqui”. A poesia é justamente
o grande ausente nas edições da FLIP, que homenagearam autores consagrados como
Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado e Ferreira Gullar, ignorando
completamente os novos poetas. Quando a poesia entra na FLIP, não é pela porta
da frente, mas pelos fundos, graças aos poetas independentes que vão até Paraty
para vender os seus livros de mão em mão. Conforme Rubens Jardim, que ao lado
de Lindolfo Bell foi um dos animadores da Catequese Poética, “não fui a nenhum
evento oficial, mas não tive sorte de escapar ileso: almoçando com amigas, fui
obrigado a dividir espaço com o Lobão, esse famoso atirador sem foco. Afora
isso, presenciei a cidade intransitável, até para quem anda a pé. O lado bom
foi ter presenciado muitos poetas e escritores jovens vendendo livros, de mãos
em mãos, nos botequins e bares”.
O poeta e editor Eduardo
Lacerda, fundador da Patuá, que publica novos autores em edições de pequenas
tiragens, concorda com Rubens Jardim: “Eu tenho um depoimento muito pessoal,
não serve nem como referência. Acho que a FLIP é um evento midiático sim, por
um lado, mas a minha experiência em 2012 foi incrível. Além dos eventos
'oficiais' (não fui a nenhum), vi centenas de leitores, escritores, poetas,
todos se lendo (além dos livros 'oficiais'), vi gente encarando a fiscalização
e vendendo livros de mão em mão, poetas indo à praia, bebendo, conversando”. O
melhor da FLIP, podemos concluir, não está nos catálogos de best-sellers ou nas
resenhas publicadas nos grandes jornais, mas na produção independente, que
circula hoje na contracorrente dos blogues, redes sociais, pequenas editoras,
revistas de curta duração, e só entram na badalada festa carioca pela porta dos
fundos.
(*) Claudio Daniel é
poeta, professor de Literatura Portuguesa na UNIP e editor da revista Zunái.
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