História de potoqueiro ou
não?!
por Celso Sisto
RAMOS, Graciliano. O
estribo de prata. Ilustrações de Simone Matias. Rio de Janeiro, Galerinha
Record, 2012. 24p.
Algumas histórias já
nascem exageradas! E ficam ainda mais saborosas se o contador do causo souber
manipular a expectativa dos ouvintes, de modo a obter a maior tensão e a maior
surpresa possíveis.
Neste livro, o velho
Alexandre, vaqueiro e grande narrador de histórias, conta para sua plateia
cativa de sempre, uma aventura vivida há alguns anos. Num dia em que voltava da
fazenda do seu sogro, após uma viagem de negócios, Alexandre deparou-se com uma
cobra cascavel de dois metros de comprimento, que ágil, abocanhou seu pé
direito. Como o homem estava bem calçado com bota de couro, a dentada não o
atingiu. A cobra foi perseguida e caçada. O velho vaqueiro levou pra casa o
chocalho da peçonhenta, com seus dezessete anéis, como prova da longevidade da
bicha, e o guardou. Um mês depois, quando ia sair em viagem para o sul, ao
mandar selar o cavalo, Alexandre teve a maior das surpresas: o estribo de
prata, que tinha sido atingido pelos dentes da cobra, sofrera as ações do
veneno e reagira com a força da mudança da lua. Diante do espanto do grupo que
ouvia a história, Alexandre confirmava o tanto de arrobas de prata que tinha
lucrado com aquele inesperado episódio.
A delícia deste tipo de história está exatamente
no tom de conversa. Na atmosfera caseira de um bom bate-papo, em torno de quem
sabe como ninguém prender a atenção da audiência. No âmbito da casa rural,
cercado de aperitivos e de prazeres compartilhados, as histórias ficam mais
saborosas.
Os amigos do velho
Alexandre – Seu Libório, o cantador; Firmino, o cego; Mestre Gaucêncio, o
curandeiro; Das Dores, a benzedeira e afilhada do casal; e Cesária, a fiel
esposa, que acredita piamente em tudo o que o marido conta - participam da
história tecendo comentários, fazendo perguntas, duvidando de uma passagem ou
outra, denunciando um exagero. Alexandre é um fanfarrão, bem se sabe, e tem
fama de mentiroso. Mas diverte os amigos e provoca uma certa polêmica, o que
torna tudo ainda mais íntimo para o leitor.
É um verdadeiro deleite participar
desta “escuta” e perceber meio incrédulo como os causos ficam aumentados na
boca do velho vaqueiro.
O cenário da história, com
sua paisagem de xiquexiques e mandacarus, também é típico da zona rural e a
natureza, com seus sinais inconfundíveis, exerce um importante papel na
composição da história e na vida dos personagens.
Mas a linguagem de homem
do campo, com expressões próprias deste universo também é um elemento de grande
atração no livro. Quem pode resistir ao impacto de expressões do tipo
“farejando miséria” ou “batecum forte no coração”? Ou à beleza de uma
construção singela e poética, como esta: “uma lua enorme e vermelha, de cara
ruim, dessas que anunciam infelicidade” ou “a lua crescia muito limpa, tinha
lambido todas as nuvens, estava com intenção de ocupar metade do céu”?
Este conto faz parte do
livro Histórias de Alexandre, publicado originalmente em 1944, composto de
narrativas coletadas do folclore alagoano, que ganham muito com a marca autoral
do grande escritor Graciliano Ramos. Depois, em 1962, o livro foi editado
novamente com o título “Alexandre e outros heróis”. E agora, este, da editora
Record, com apenas o referido conto.
As ilustrações de Simone
Matias, com toda uma gama de cores decorrentes da vermelhidão do barro e da
terra, ganham lirismo quando transpassadas pelo verde ou pelo branco. As
figuras um pouco alongadas, a composição das cenas, a texturização obtida com a
sobreposição das tintas, criam atmosferas riquíssimas para a obra.
Diante da reunião de tanta
coisa boa, este livro só pode ser mesmo um sucesso!
Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/
Celso Sisto
é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá
(RJ), ator, arte-educador, crítico de literatura infantil e juvenil,
especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da
Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de
histórias espalhados pelo país.
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