AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (17) [Rubens Jardim]
Não.
Perdido nas esquinas
sugerido nos desejos
o melhor não tem mais jeito.
É o pão que não comemos
mas amassamos
esse vinho derramado
que não bebemos
todo amor que não amamos
— imaginado —
é sempre o que não fazemos.
o melhor nasce desfeito
ou nos desfaz em mil momentos?
Não Escute
Não escute meu choro
quieto:
eu sou um deserto
e preciso chorar
Não escute meu amor
fugidio:
eu sou um rio
e preciso passar
Não escute meu sorriso
constante:
eu sou um instante
e preciso durar
No espelho I
Sombra fugaz num túnel sem fim
o tempo passa despercebido
passa de mim a outro espelho
eu defronte de outro (eu mesmo?)
um espelho no espelho no espelho
somos nada ao infinito das vezes.
Descubro um Narciso de repente
em mim. Debruçado sobre mim
me vejo mil vezes repetido:
o mundo é só um túnel de vidro.
Mas que imagem vale esse vazio
sem rosto quebrando a solidão
que corta meu corpo como um rio
sem nunca alcançar meu coração?
CONSTRUÇÃO
Lanhada a pedra,
faço-me fio,
partilho, rasgo
entranha e estranho.
Quebrado o leme,
desoriento,
acolho vento,
maré e abismo.
Cavado o poço,
torno-me água,
mão retorcida,
lisura e barro.
Feito o silêncio,
lasso a palavra -
gume sequioso
de outra navalha.
Arqueologia
removo o pó dos sonhos
convoco oráculos
deuses
pitonisas
remonto a um passado
indecifrado
labiríntico
descerro véus
– é tua esta sentença?
como dói escavar este argumento
o nó o laço o texto
quando somos nós mesmos
subterrados
MADRUGADA
quando em silêncio arde o desespero
teu rosto assoma
tua mão acolhe o fogo e me desata
o descompasso
o dia serpenteia na garganta
um poema grita
germinando luz
Das rochas escuto rimas
Deixo que passem pássaros
As palavras as vertigens
Não me aproprio ainda
Do seu imprevisto canto
Escalo a página em branco.
PROSA CANORA
Meus pensamentos nem sei
Vieram de estrelas tristes
Invento o que não existe
Para enganar minha alma
Invento a morte sem ossos
Escrevo auroras em lápides
Pastoro as águas da tarde
Para tecer mais um dia
Em minha roca sombria
Costuro uma blusa eterna
Colchas claras de lanterna
Para tecer mais um dia
Vou além da alta noite
Além das cruzes em quadras
Ausências extraviadas
Meu verso em ti amanhece.
AS GALÁXIAS
As galáxias
se expandem
e nem ouvimos
seus gritos
os labirintos
se aprofundam
sem que saibamos
seus números
esperamos
que um cão azul
decifre
o infinito
e que nos esclareça
a álgebra
do abismo
a lógica
do insondável
a física
do ilimitado.
Por que é tão dramática
a visão de um céu estrelado?
DA MORTE
Os mortos não sobem aos céus
nem elevam-se abstratos
tornam-se apenas retratos
lado a lado nas paredes.
Retrato do avô imóvel
austero e silencioso
do tio tuberculoso
que esquivo me espia.
A avó já está fria
mas me olha com ternura
tece uma colcha escura
para as bodas da família,
Mortos não sobem trilhas
de inconsistentes arranjos
não viram anjos nem brisas
nem cristos nem assombrados.
Sequer passam dos telhados
sequer vão a outros mundos
quando morrem se enraízam
e se alastram é pelos fundos.
Não lhes peço algum milagre
também não lhes rogo bênçãos
de dentro de seus quadrados
não podem mover o Tempo.
Quadros em salas quietas
emoldurados cinzentos
memória em fragmentos
— as vezes nem lhes percebo.
Aviso da Lua que Menstrua
Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia
Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita...
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos...
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente.
Ela é uma cobra de avental.
Não despreze a meditação doméstica.
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofia
cozinhando, costurando
e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!
Zumbi Saldo
Zumbi, meu Zumbi.
Hoje meu coração eu arranco
Zumbi hoje eu fui ao banco
E ainda estou presa
Escuto os seus sinos
e ainda estou presa na senzala Bamerindus
Presa definitivamente
Presa absolutamente
à minha conta
corrente.
Au Gratin
Fumo um cigarro fino
Como um palito
O calor do Rio é ridículo
Calor de chuva enrustida
Calor do céu oprimido
De inferno mar resolvido
Que não sabe se queima esse cara
Ou o assa ao ponto
Um calor filho da puta
Um calor de estufa
E eu sem nem ser judia
Sofro aos pouquinhos
Sofro esse zé pagodinho
Ardo nesse pecado que não cometi
Nesse forno onde me meti
Por uma apimentada dica
De um nordestino
Que me mostrou uma placa citada, tinhosa:
"CIDADE MARAVILHOSA"
Eu vim.
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