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"Cena urbana" e é de Roberto Magalhães (2003). |
Cena urbana
Ele se senta à minha
frente. Não comigo. Apenas em frente. Toda manhã tomamos juntos o café
fumegante da lanchonete da esquina. Sem nunca termos nos falado ou tocado. O
lugar é simples, quase vulgar, mas perfeito para quem tem paladar.
Ele gosta de pão na chapa.
Dois. O café sem açúcar no copo. Copo de vidro. Nada de xícaras na lanchonete
da esquina. Ele come de boca fechada; bem-educado. Concentra-se no pão e cada
mordida revela uma boca ávida, decidida. As mãos que alterna no copo têm unhas
curtas, bem aparadas, limpas, quase uma exceção entre os homens. Mas ele é um
homem. Indiferente a tudo que não seja o momento. Mastigando o silêncio,
agasalhado por uma jaqueta de couro que grita seu preço.
Ela se senta atrás dele.
Toda manhã, também. Como o clichê de um encontro marcado. A mesa de madeira à
frente dela — atarraxada no chão por pregos grosseiros que desafiam a lei de
ocupação dos espaços públicos — tem rabiscos entalhados, feitos à chave. Um
copo de café com leite, um pão grelhado, uma fruta. Maçã, invariavelmente. Ela
observa tudo em volta, sem pressa, até que os olhos se perdem em alguma coisa
que vem de dentro. Memórias que doem, talvez. Mas ela os resgata do vazio,
obrigando-os a orbitar novamente este mundo. Logo após a refeição, recolhe com
a ponta do indicador as migalhas do prato, levando-as à boca num gesto
infantil. Unhas pintadas de um rosa esmaecido. Tão sem graça quanto ela.
Cabelos sem corte, castanhos como os de todo o mundo, presos num coque
irregular no alto da cabeça. A boca sem batom, as orelhas sem brincos, a
armação escura dos óculos escondendo os olhos ciclotímicos. Uma sucessão de
insignificâncias.
Em algum momento de uma
dessas manhãs, ele se levantará para repetir o hábito de pagar a conta no
balcão. Subitamente tonto, vai cambalear e tropeçar em algumas cadeiras,
sentando-se em seguida para tentar melhorar. Só então se lembrará do diabetes
que negligencia por medo. Mas estará muito fraco para cuidar de si mesmo. Em
dois passos, ela chegará até ele. Uma pergunta; uma confirmação. E ela ordenará
ao atendente, com urgência, um copo de café, dentro do qual despejará um, dois,
três dedos de açúcar. Ele beberá aquela gosma de uma vez, queimando a língua. O
pior da crise passará. E, logo, a mão dele, de unhas curtas e limpas, apertará a
dela, de unhas insossas. Ambos seguirão até o consultório dela, no mesmo prédio
que a firma dele. Exames serão pedidos, orientações dadas, telefones trocados.
Ninguém sentado hoje à
minha frente. Mais ao fundo, quase no fim do toldo, imagino ver, por um instante,
o homem da jaqueta de couro explicando alguma coisa à mulher de unhas
cor-de-rosa. Ela ri com a mesma boca sem batom e ajeita os cabelos ainda presos
no coque desleixado. Só os olhos, agora, são outros, esvaziados das memórias
que doem.
Mas o instante foge. Lá,
no fim do toldo, não tem ninguém. Sou apenas eu fabricando um roteiro pobre. Eu
e esta vontade ordinária de que ainda haja encontros por aí.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
3 comentários
Fazer de uma cena ordinária um roteiro romântico pode não ser original, mas é raro nos dias atuais. Por isso seu texto cativa e deixa aquela vontade de que isso realmente aconteça. Acho que não se pode perder a esperança de que romance esteja em qualquer lugar e de que pessoas se encontrem. Continuo admirada com sua capacidade de ver as pessoas.
Ah, que ideia fantástica!!! "Sucessão de insignificâncias". Cinthia, você é genial! A mim, me deu vontade também de que acontecesse um encontro romântico. Fiquei louca da vida com o final. Rss
Denise e Cecilia, obrigada!
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