Valesca Popozuda é
cultura? A difícil diferença entre cultura, arte e entretenimento
Marcelo Spalding
Já foi Paulo Coelho, Zé do
Caixão, Michel Teló, Carla Perez, Romero Brito; Julio Iglesias, Madonna,
Chaves, Roberto Benini, Psy. Agora é Valesca Popozuda. Isso tudo é cultura? E
se não é cultura, é o que? Diversão? Alienação? Uma bofetada no gosto público?
Para responder a esta
fácil questão é preciso retomar o difícil conceito de cultura. E vou resistir à
tentação de começar com a etimologia da palavra, primeiro porque não sou
versado em latim, segundo porque a origem do termo cultura é tão ampla que
pouco ajuda na definição.
Ocorre que cultura não é
sinônimo de arte, nem de erudição, como muitos pensam. E tanto pensam que
chamam de culto aqueles que ouvem música clássica alemã, entendem de literatura
francesa ou assistem a filmes italianos. Cultura é, a grosso modo, o oposto de
natureza, o domínio do homem sobre a natureza. Tanto que até o Iluminismo
francês o termo cultura estava associado ao cultivo da terra, ao que hoje
chamamos de agricultura. Daí a “cultura” do tomate, a “cultura” da uva, etc.
A oposição, então, é entre
o que é natural X o que é cultural. Comer é natural; comer fondue é cultural,
comer churrasco é cultural. Transar é natural; strip-tease é cultural,
monogamia é cultural; Dormir é natural; sestear em rede é cultural, dormir em
cama de casal é cultural. Ter medo é natural; representar o medo é cultural,
criar mandingas é cultural.
Claro que essa acepção de
cultura é muito ampla e não condiz, por exemplo, com a função do Ministério de
Cultura de um país (que não lida com a religião, com a agricultura, com a
tecnologia, etc), nem com os assuntos de um Caderno de Cultura jornalístico
(embora estes estejam ampliando sobremaneira suas pautas). Nestes casos,
cultura é compreendida como o conjunto de representações, partindo das sete
artes (literatura, teatro, pintura, escultura, música, arquitetura e cinema),
mas hoje estendendo-se a folclore, televisão, moda, design, gastronomia, HQs,
games, etc.
Note, porém, que não há
juízo de valor no termo “cultura”. Dessa forma, sim, Julio Iglesias, Paulo
Coelho, Chaves, Zé do Caixão e Valesca Popozuda são parte da cultura, tanto
quanto Shakespeare ou Noel Rosa. Beijinho no ombro para todos nós.
É nesse ponto, porém, que
devemos distinguir duas categorias que estariam dentro da categoria cultura:
arte e entretenimento. Quando se fala em jornalismo cultural, especialmente,
temos de lembrar que ele lida com arte e entretenimento, o que inclui a novela
das seis e o Big Brother. Essa é a dicotomia; não, como escrevem alguns,
cultura e entretenimento, pois o entretenimento é parte da cultura, gostemos ou
não.
É na distinção entre arte
e entretenimento que o terreno torna-se pantanoso, pois lida com aspectos
estéticos, ideológicos e, em ambos os casos, de forma subjetiva. Não que os
conceitos não sejam relativamente claros: entretenimento é aquilo que diverte,
distrai, entretém; arte, segundo o Houaiss, é a "produção consciente de
obras, formas ou objetos voltados para a concretização de um ideal de beleza e
harmonia”. O difícil, aqui, é definir beleza. O belo é uma construção ou é algo
palpável, objetivo? E definir limites: não pode algo entreter e ser belo?
Para não entrar em
meandros filosóficos que vão além de minha alçada, e estudos sobre a estética
temos muitos, podemos dizer que, pensando nos extremos, a principal diferença
entre aquilo que é produzido como arte e aquilo que é produzido como
entretenimento é o fim, o objetivo. A rigor, e sendo muito simplista, uma
sequência do Homem Aranha quer arrecadar muitos milhões no fim de semana de
estreia e deixar os investidores felizes, mesmo que seja esquecido daqui a um
ou dois anos. Por outro lado, um Saramago ou um Guimarães Rosa não fazem
concessões de linguagem porque não querem perder sua credibilidade, acreditando
estarem fazendo algo sublime, artístico, que permanecerá para além de seu tempo
e espaço (e são reconhecidos pelo público, pela mídia, etc exatamente por este
motivo).
Claro que muito do que é
produzido como entretenimento pode, com o tempo, obter valor artístico, seja
pela qualidade da obra, seja pela sua importância histórica (por vezes por
ambos os motivos). O filme Casablanca e o seriado Chaves talvez sejam bons
exemplos. Por outro lado, algo que seja produzido como arte pode acabar
tornando-se puro entretenimento, e que o digam esses videozinhos virais da
internet.
Isso não impede, porém,
que se tenha clara a distinção entre arte e entretenimento, até porque o
público faz essa distinção. Apesar de todos os esforços da indústria do
entretenimento (se os frankfurtianos vivessem hoje...), as pessoas querem algo
que mexa com elas, algo que permaneça em seu imaginário, algo que amplie seus
horizontes simbólicos, amplie sua visão de mundo. Isso só a arte faz. Pergunte
para alguém ao seu redor qual foi o filme, o livro, o disco ou a peça de teatro
que mais marcou sua vida. Duvido que a resposta seja Rambo ou Valesca Popozuda.
Talvez a solução para
compreendermos nosso momento cultural contemporâneo seja não ver o conceito de
arte como algo binário (é ou não é arte), e sim como um atributo que pode estar
mais ou menos presente em determinada obra. Porque certamente há elementos
estéticos (artísticos) em um blockbuster ou em uma novela das seis, assim como
há elementos de entretenimento em um romance de Saramago.
Discutir quais são esses
elementos, o que torna um filme melhor do que outro, um livro melhor do que
outro ou uma música melhor do que outra para um conjunto grande de pessoas (não
se pode fazer esse tipo de avaliação com a opinião de uma pessoa só), discutir
o que faz de Tarantino, Saramago ou dos Beatles o que eles são é, talvez, o
grande desafio para quem trabalha com cultura hoje. E não tentar desqualificar
a Popozuda porque ela quer ganhar dinheiro e chama a atenção da mídia.
Fazer cultura é um direito
de todos, até da Popozuda. Eu diria até que é inerente a cada um de nós. Já
fazer arte é um ofício, um dom, um mistério, uma busca incessante de uns poucos
loucos como alguns de nós. Ainda que jamais consigamos alcançá-la.
Marcelo Spalding
é formado em jornalismo e mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS,
professor da Oficina de Criação Literária da Uniritter, editor do portal
Artistas Gaúchos, autor dos livros 'As cinco pontas de uma estrela',
'Vencer em Ilhas Tortas', 'Crianças do Asfalto', 'A Cor do Outro' e
'Minicontos e Muito Menos', membro do grupo Casa Verde e colunista do
Digestivo Cultural. Recebeu o Prêmio AGES Livro do Ano 2008 pelo livro
'Crianças do Asfalto', categoria Não-Ficção, e o Prêmio Açorianos de
Literatura em 2008 pelo portal Artistas Gaúchos. Site: www.marcelospalding.com.
Esse texto foi originalmente publicado no site: http://www.artistasgauchos.com.br/
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