As musas que salvaram o
rei
FOTOS JOÃO CALDAS
À esquerda de quem adentra
a sala de estar do apartamento que Juca de Oliveira mantém em São Paulo, estão
imponentes as estátuas de Melpômene e Tália, as musas da tragédia e da comédia,
respectivamente, na mitologia grega.
Filhas de Zeus e
Mnemósine, são elas que vigiam os passos que o ator, dramaturgo e diretor
brasileiro de 79 anos dá nos tablados há quase meio século. Foi também a elas
que Juca recorreu quando se viu prestes a desistir de realizar o seu mais novo
espetáculo: Rei Lear, que estreou dia 18 deste mês na capital paulista, no
Teatro Eva Herz.
Traduzido e adaptado pelo
poeta e roteirista Geraldo Carneiro, é a primeira vez que a peça, escrita por
William Shakespeare em 1605, será apresentada em formato de monólogo. Incumbido
de interpretar as seis principais personagens da trama, sob direção de Elias
Andreato, foi necessária uma longa conversa com as “meninas”, como Juca chama
carinhosamente as musas gregas, para ter certeza de que o desafio era passível
de ser resolvido.
Ser pensante e decepcionado
com o momento atual da política brasileira, Juca é conhecido do público também
pelas muitas novelas em que atuou, assim como pela sua dramaturgia. São de sua
autoria peças de sucesso, como Qualquer gato vira-lata tem uma vida sexual mais
sadia que a nossa, Caixa dois, Às favas com os escrúpulos e Happy Hour. O teor
crítico político impera nos textos, os quais se apoiam na comédia para fazer o
público pensar. “A maioria das minhas peças nasce da minha indignação. E não
digo: ‘Ah, vou escrever uma comédia’. Mas ela acaba se tornando uma, justamente
porque tem um conteúdo crítico brutal. A comédia é interessante, porque ela não
pega o coração, ela pega o cérebro. Quando você vê, está rindo de alguma coisa
da qual você é cúmplice.”
Não é de estranhar, portanto,
que no papel já começa a nascer o texto de uma nova peça, embora sem qualquer
previsão de quando será finalizada. Juca, realmente, não para. Assim, vive
agora Lear, continua a ofertar seu amor a Melpômene e Tália, e à sua esposa,
Maria Luiza, com quem vive em uma fazenda em Itapira, quando os compromissos
não o obrigam a ficar na cidade. “Sou caipira, gosto do mato. A floresta é o
hábitat natural do homem.” Mas o que vocês produzem por lá? “Nós somos um dos
maiores produtores do Estado de São Paulo de prejuízo (risos).”
Rei Lear foi escrita,
inicialmente, para quase duas dezenas de personagens e, neste monólogo, você
interpreta seis delas. É difícil lidar com o ego de estar sozinho em cena dando
vida a um trabalho tão importante de Shakespeare?
Não. Realmente, não tenho
nenhum problema em relação a isso. Poderia dizer que, no começo, o que gostaria
de fazer, se pudesse, seria o Rei Lear completo, com todas as personagens. Mas
isso se torna cada vez mais difícil para nós de teatro. Em virtude de que a maioria
absoluta e, sobretudo, os principais atores do Brasil estão comprometidos com a
televisão. É muito difícil você conseguir um elenco como o de Rei Lear e
mantê-los durante certo período trabalhando no teatro. De um modo geral, você
começa e, em seguida, tais ou quais personagens importantíssimos do seu
espetáculo são convocados para xis novelas da Globo. E os atores,
evidentemente, têm contratos profissionais seríssimos e compromissos com a
própria vida, etc.
E há a questão da
remuneração, não?
A televisão acaba
remunerando mais do que o teatro e todos, então, não ficam em disponibilidade
para esse tipo de trabalho. O fato de você fazer um monólogo como Rei Lear
teria, do meu ponto de vista, até algo didático. Assim: “Vejam como é difícil
fazer a peça completa”. E, de repente, tenho que me aventurar no maior desafio
de toda a minha vida em um monólogo.
Essa dificuldade de reunir
elenco foi, então, um dos fatores que te impulsionaram a fazer dessa peça um
monólogo?
Não foi uma escolha minha.
O Lear aconteceu de uma maneira muito curiosa, porque fui a um
debate-apresentação de um livro de poesia do nosso poeta maior, Geraldo
Carneiro. E conversávamos sobre Shakespeare e estava dizendo a ele que já tinha
feito três [peças shakespearianas] – Júlio César, como o Marco Antônio; Ricardo
III, como Ricardo III; Otelo, como Otelo –, e dizia que agora, na minha idade,
o que me sobra é o Falstaff ou o Rei Lear. Ele riu, debatemos e, quando
terminou, ele falou: “Olha, é o meu aniversário. Estou fazendo um jantar na
casa da minha mulher aqui em São Paulo e gostaria que você fosse”. Acabei indo.
Aí ele disse lá: “Tenho um monólogo sobre o Rei Lear que está praticamente
pronto e escrevi para você, sempre pensando em você. Então, de repente, você
aparece na minha leitura e fala sobre Shakespeare e a possibilidade de fazer
algo dele no futuro. O que você acha? Você faria?”. Acho que, quando você
recebe uma proposta desse gênero de um grande criador como Geraldo Carneiro,
você diz ok imediatamente e pronto. E foi o que fiz.
Mas é um desafio e tanto
fazer um espetáculo como esse...
Eu fiquei em pânico! A
primeira providência que tomei foi encontrar, quem sabe, algum grande ator
inglês ou americano, ou italiano, ou francês que estivesse fazendo um monólogo
do Rei Lear. A grande surpresa é que não existe, ninguém fez um monólogo do Rei
Lear. Fizeram trechos do Rei Lear, das personagens, mas não a peça toda. Fiquei
absolutamente em pânico e pensei: “O que é que vou fazer?”. Bom, mergulhei no
trabalho de adaptação e comecei a procurar, tentar desvendar... Enorme a
dificuldade que eu tinha. Convoquei imediatamente o Elias Andreato, diretor que
amo e que já me dirigiu. O Elias topou e continuei trabalhando. Mas houve um
momento em que fiquei absolutamente desesperado.
Você pensou em desistir?
Telefonei para a Sonia
Odila, responsável pela Lei Rouanet, e disse: “Sonia, é o seguinte, tenho uma
notícia terrível. Cheguei à conclusão, agora, depois que estudei bastante, que
não é possível fazer essa coisa. Infelizmente. Foi um sonho que nós acalentamos
durante alguns dias, sonho do nosso poeta, mas não dá para fazer”. Ela falou:
“Meu Deus! E agora? Nós temos que devolver algum dinheiro, vai lhe dar certo
prejuízo”. Eu falei: “Olha, lamento profundamente, mas nós temos que cancelar”.
Falei com o Elias e foi nesse momento que entraram as meninas, que tive um papo
com Melpômene e Tália. Elas são absolutamente fantásticas.
E dessa conversa com as
deusas do teatro você encontrou a solução para continuar a peça?
Como é que eu fiz? Apanhei
a adaptação do Geraldo e fui avançando, procurando memorizar um pouco. Fiquei
sexta e sábado sem dormir. E quando foi domingo à tarde – elas são
absolutamente fantásticas [as deusas] –, cheguei a certo momento em que era o
encontro entre o Lear e a Cordélia. Ele pede às três filhas que proclamem o
nível do amor de cada uma delas para que ele, então, divida com elas o reino. A
Goneril e a Regan dizem que não existe absolutamente nada além dele e a
Cordélia simplesmente fala “Não”. E diz o seguinte: “Para que minhas irmãs têm
seus maridos se ambas juram amar somente a ti?”. É um troço violento! Aí começa
a grande tragédia. Ele a deserda e expulsa de sua vida. Ele não a considera
mais filha, porque ela não foi capaz de dizer a adoração por ele. As duas
filhas o traem e fazem um pacto para assassiná-lo e quem o salva é exatamente a
Cordélia. E, quando cheguei nessa cena do encontro entre ela e o pai, é que
tive um insight e falei: “A peça acaba aqui”.
Assim você entrega à
imaginação do espectador a melhor continuação?
Fica com o espectador a
incumbência de imaginar a morte do Lear e a morte da Cordélia, como existe em
Shakespeare. Cada um pode dar o destino que quiser a essas personagens. E eu
fiquei em uma euforia muito grande e liguei para o Geraldinho, para ver se ele
topava. Li para ele três vezes e falei: “É aqui que acaba. Quero que você me dê
autorização, que você diga que nós podemos encerrar a peça neste momento”. Ele
falou: “Claro que sim! Eu sempre soube que você adora happy ending” (risos). Aí
falei: “Então vamos”. Cancelei o cancelamento, continuamos a trabalhar e
estamos com ela pronta.
Rei Lear foi escrita há
quatro séculos. O que, depois de todo esse tempo, você imagina que ela irá
despertar no público?
O Rei Lear está tratando
da crueldade dos filhos em relação aos pais. Então, hoje, nessa situação, os
clones da Goneril e da Regan encarceram os seus pais, os seus velhos pais nos
asilos para evitar o incômodo. Acho que é atualíssimo você discutir esse tema
hoje, porque é um tema complicado. Tenho exemplos tão trágicos de pessoas que
fizeram desatinos com seus velhos pais que acho que você tem que ficar atento a
isso. E veja você: o aumento da longevidade, o problema da expectativa de vida
subindo levou, com relação aos idosos, a uma situação terrível no que diz
respeito à Previdência Social, que atinge diretamente o idoso de uma forma
contundente.
Em que sentido você diz?
Até para ir a um hospital
deve-se pensar bem, depois daquela mulher que, recentemente, matou vinte e tantas
pessoas, desligando o oxigênio. É uma coisa simples. É uma torneirinha, o cara
está lá, está ruim, está fodido, está velho. De repente, ele pode se recuperar
e viver mais 50 anos. Mas está tudo dizendo que não. Ela fechava a torneirinha
e ele ficava sem oxigênio e morria. O velho no hospital é um desastre terrível,
porque ele tem hemodiálise, ele tem pulmão mecânico, ele tem os remédios
terríveis; tem quer ter uma assistência permanente e é tudo muito caro.
É um gasto sempre
crescente.
Você apagar o velho hoje é
conveniente até para o governo, que tem ambições políticas de subir, de ter uma
visibilidade internacional. A liquidação dos velhos é muito boa, porque você
diminui esse vazamento que não acaba nunca da Previdência Social. Você cada vez
deve mais. Fica devendo, porque cresce, cresce, cresce, cresce. De onde você
vai tirar dinheiro? “Vamos eliminá-los.” Estou dizendo que é uma hipótese
sinistra e trágica, mas que não é distante. Não acho que seja distante. Não me
refiro aos nossos políticos, mas a algumas manifestações de egoísmo do mundo
podem cair em um apagamento mais organizado.
Discutir essas e tantas
outras questões continua sendo o principal papel social do teatro?
O queridíssimo Flávio
Rangel, um dos maiores diretores do Brasil de todos os tempos, com quem eu tive
a honra de trabalhar algumas vezes, tinha uma frase que é absolutamente válida
hoje e sempre. Ele disse: “O teatro é o moribundo mais antigo de que se tem
notícia”. Tudo matou o teatro! A poesia, a poesia épica. O cinema matou. A
televisão matou. A internet matou. Mas o teatro é um ato de presença muito
sério. Nós nascemos da religiosidade, nós nascemos do altar, nós nascemos da
fé. A missa é uma peça de teatro, a Via Sacra é uma peça de teatro. E essa
necessidade do mago que o orienta, que o recebe, com quem ele troca as suas
aflições, as suas dúvidas, é absolutamente importante para ele continuar
avançando. Assim como esse mago se multiplica, tem o pajé, o mágico, o ator. O
ator, ele é o mago. Você vai ao teatro da mesma forma que você vai a um templo.
Mas como você observa o
momento atual do teatro no Brasil?
O Brasil vive a maior
tragédia cultural da sua época, em minha opinião. É um momento muito terrível –
na Europa e nos Estados Unidos, o espetáculo vivo, o teatro, volta a crescer. E
acho que ele começa a subir exatamente porque as pessoas estão cada vez mais
isoladas com seus smartphones. Não há contato entre as pessoas, e a necessidade
de você entrar em contato com a sua história, com a sua missão, com a sua alma,
é através do mago, é através desse local de onde nós somos expulsos, mas nos
encontramos nas encruzilhadas, como os batedores de carteira, os ladrões, as
prostitutas, os homossexuais. E a nossa tarefa não mudou. Ela continua com esse
aspecto.
De contestar, de revolucionar?
Por isso a assertiva do
Flávio Rangel é corretíssima. O teatro vai à frente; ele não pergunta para as
pessoas se gosta ou não. Se você tivesse, por exemplo, Romeu & Julieta em
Stratford-upon-Avon [a cidade natal de Shakespeare] e fizéssemos uma pesquisa,
toda a população diria que gostaria infinitamente que o Romeu se casasse com a
Julieta no final. Só que nós não teríamos o teatro. Não é verdade? O
Shakespeare os liquidou para falar sobre a intolerância dos grupos, o ciúme.
Por isso que o teatro vai à frente. Por isso que você pega uma peça de
Aristófanes, do quinto século antes de Cristo, e ela é atual; ela foi muito na
frente! O Molière, por exemplo, Plauto e Terêncio; todos esses autores, eles
são moderníssimos ainda hoje, justamente porque abriram caminhos, criaram novos
modelos de cultura. Eles não ficaram a reboque do gosto.
Mas não há uma
burocratização no processo de fazer teatro hoje?
Hoje, por exemplo, os
espetáculos ficam um mês e meio, dois meses em cartaz. Por quê? Porque era
infinitamente mais fácil você produzir antigamente. Nós precisávamos de madeira
para construir o cenário, então íamos a uma madeireira e dizíamos: “Temos um
programa, nós citaremos o senhor e o senhor nos dá a madeira”. Ele dava a
madeira. Ia a uma loja, ela dava a roupa. Todos estavam colaborando
culturalmente e essa é a função, inclusive, da sociedade e dos homens de
negócios. Como é que nós divulgávamos? Os jornais publicavam os famosos
“quadradinhos”, com todas as peças. Não custava absolutamente nada! Quando ia
lançar, você ia às rádios, fazia uma entrevista, se tinha a possibilidade. E
você saía até com um carro de som. E o negócio funcionava. Hoje, é
absolutamente impossível. Se não tiver R$ 350 mil para lançar o espetáculo,
você não pode.
A Lei Rouanet dificultou a
produção cultural?
O problema é que ter a Lei
Rouanet jogou tudo a um preço tão exorbitante que, quando você entra em
qualquer projeto, o fulano quer R$ 50 mil, o outro quer R$ 25 mil, o outro quer
R$ 30 mil. A Lei Rouanet é complicadíssima, não está disponível para todos.
Também há o surgimento da picaretagem, daqueles que querem pegar uma Lei
Rouanet, faz um mês e meio [de espetáculo], passa para outro e faz mais um
mês... Eles não estão interessados no teatro. O Paulo Autran tinha uma frase
que eu adoro. Em uma ocasião, tinha uma pessoa o entrevistando e o cara disse
assim: “Mas, Paulo, me diga uma coisa: você é contra a Lei Rouanet?”. Ele falou
assim: “Não apenas contra a Lei Rouanet. Eu sou contra o Ministério da Cultura.
O Ministério da Cultura é um absurdo, porque a cultura é a criatividade, é a
criação, é a alma do povo. Eles é que descobrem. A cultura sempre nasceu de
manifestações do povo, do seio do povo, e não através do Estado”.
Não poderia ser fruto de
um departamento...
E de um departamento que
determine: “Vamos fazer agora, coletivamente”. “Agora, vamos fazer cinco
teatros aqui.” O povo é que tem que descobrir. O que nos leva a fazer é a
paixão! Outro dia, por exemplo, uma das maiores atrizes que nós temos falou o
seguinte: “Olha, tenho quatro projetos em andamento na Lei Rouanet. O que sair
primeiro eu faço”. Isso nunca poderia existir para nós! Nós fazemos por paixão.
A hora que o Rei Lear caiu em minha mão, e depois que eu tive o papo com
Melpômene e Tália, eu iria fazer de qualquer jeito – com Lei Rouanet ou não –,
porque você se apaixona. É uma questão de vida ou morte.
Você vê um novo rumo para
as políticas culturais brasileiras?
Acho que nós temos que
analisar a mudança que acontece. Mudou. O homem é outro homem, a economia já
não se comporta da maneira tradicional, a política também não é a política
tradicional, não é a esquerda stalinista, a direita não é a UDN. Aliás, nem
esquerda e direita hoje você pode dizer que há. Você não pode dizer o Lula, por
exemplo, é de esquerda. Claro que o Lula não é de esquerda. Evidentemente! Não
tem nenhuma atitude de esquerda dele. Então, como que nós vamos nos acertar
nesse novo momento de tecnologia avançada, da internet que nos avassala, que
entra? É disso que nós vamos tirar alguma vantagem.
Você não é contra a
evolução em si?
Não, pelo contrário. Acho
que ela é fundamental. Quanto mais avançarmos, nós vamos encontrar uma forma de
nos entender nisso. Sem dúvida nenhuma!
E para um homem como você,
que já foi militante da esquerda e declarou há certo tempo seu desencantamento
com o PT, o que pensa do atual governo?
Do ponto de vista
político, confesso que estou muito decepcionado, muito sem uma perspectiva
próxima de como é que nós saímos dessa situação. Esses últimos anos foram
terríveis para nós todos. É permanentemente uma tentativa de combater a
democracia, a liberdade de expressão. Há um combate diário pela internet a
todas as pessoas que defendem posições um pouco mais liberais. Existe uma ânsia
para que encaminhe a educação no sentido de uma esquerda que já não existe mais
há 40 anos, um tremendo retrocesso. Enquanto os países civilizados avançaram.
Estamos mais uma vez
atrasados então?
Nós estamos ainda
patinando nessas ideias antiguíssimas de controle da mídia, de controle da
imprensa. Agora, os “sovietes” que eles estão querendo criar, que são esses
grupos de opinião – pega entidades de bairro, MST e mais os sem-teto, reúne,
discute e estabelece um plano. Sobre o quê? Sobre o Congresso? Como é que nós
fazemos? Qual é o projeto disso se nós temos uma Constituição, se estamos com o
sistema democrático funcionando? Para que nós vamos dinamitar o sistema
democrático? Por que temos ânsia de poder? Por que essa ânsia do
bolivarianismo? Por que é que nós estamos com essa paixão pelo [Hugo] Chávez e
depois, agora, pelo [Nicolás] Maduro, por Cuba, sei lá... E depois as escolhas
são péssimas, porque estamos escolhendo economicamente mal, estamos nos
isolando do mundo. Vejo uma coisa extremamente retrógrada nos puxando.
Algo que você já viu
acontecer?
Eu me lembro, às vezes, do
seguinte: fui comunista, fui exilado com o [Gianfrancesco] Guarnieri na
Bolívia, em 1964, e nós lutávamos por uma igualdade, queríamos que todos
tivessem acesso aos meios de produção. Para nós, era importante uma democracia,
terminar com o capitalismo cruel exacerbado. Fui preso algumas vezes e tudo. E,
um belo dia, dá-se a desestalinização – o nosso grande ídolo era o Stalin, de
todos nós comunistas – e, de repente, você descobre – e nós não sabíamos, porque
éramos tolos e ingênuos e bobos – que o Stalin era um genocida do mesmo nível
do Hitler. Aí eu falei: “Meu Deus do céu, olha no que nós estávamos metidos!”.
Aí, muito bem, houve a desestalinização, o bloco soviético rompeu. Qual era a
minha expectativa? Aqueles que se isolaram, uma vez que se destruiu o núcleo
soviético, escolherão o sistema que querem seguir. E não houve ninguém que não
escolhesse a democracia. Mas há pessoas que amavam o Stalin a tal ponto que ele
era deus. E muitos se aferraram ao deus, continuaram atrelados a ele e
sofrendo. Acho que muitas pessoas que estão no governo são apaixonadas pelo
Stalin (risos).
A política, inclusive, é
fundamental em tudo o que você escreve. É possível apontar qual é o caminho que
sua obra construiu?
Acho que esse caminho é o
de uma paixão que tenho pela integridade. E essa integridade é uma integridade
política, à ética, à moralidade. Eu me pauto por isso. Se cair o seu dinheiro,
eu te devolvo; tem uns que põem o dinheiro no bolso, eu não consigo. E isso
também existe na minha análise política. Se você, amanhã, pegar uma obra minha,
você, mais ou menos, vai ter noção do que estava acontecendo naquele momento
político, porque escrevo a verdade. Eu não minto. Falo das criaturas sobre as
quais estou escrevendo com uma visão absolutamente objetiva. Procuro
investigar. E, às vezes, as pessoas ficam enlouquecidas comigo.
Você, aliás, já desagradou
muitas pessoas com essa honestidade.
Eu já tive problemas de
pessoas ficarem desagradas de coisas que disse nas minhas peças. Elas me dizem:
“Olha, você tira isso [do texto] porque é uma coisa que incomoda. Porque é um
problema político”. E sempre costumo dizer assim: “Não me arrependo daquilo que
escrevo, porque penso muito sobre o que vou escrever. E o que escrevo é a
verdade”. Então, não acho que a minha obra tenha qualquer importância cultural,
não tenho essa ambição, não. Tenho, inclusive, consciência do limite. Acho
importante você ter consciência do limite. Quando você põe os grandes
escritores ao lado, você tem consciência da sua posição. Tenho uma contribuição
pequena em relação ao teatro. Mas, a despeito de ser pequena, ela é muito
coerente do ponto de vista, sobretudo, político; sobretudo, ideológico.
E a comédia, seu ponto
forte, facilita isso, não?
A comédia é exatamente o
caminho de você despertar criticamente. Porque o drama e a tragédia atacam o
coração. Você vê a trajetória do herói e fala: “Graças a Deus, não foi tão
terrível. Eu pensei que esse abandono que eu vivi fosse uma coisa, mas veja ele”.
Ao passo que a comédia, ela está fazendo uma crítica sobre uma situação que eu
não tinha consciência. Eu rio e no que rio, eu desperto. Porque ela mexe com o
meu cérebro, ela não mexe com o coração. Então ela desperta minha sensibilidade
intelectual para aquilo.
Mesmo com o desalento
político e com a decepção sobre o momento cultural do país, você não se tornou
um homem cético.
Por causa das musas.
Estamos profundamente ligados à religiosidade, ao misticismo. Acreditamos em
nossos deuses. Isso é uma coisa presente
para o ator. Não dá para você ser ateu e subir em um palco. Eu não
acredito nisso.
Fonte:
Revista da Cultura
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