Leito seco
por Cinthia Kriemler
Parou de conduzir o barco
para olhar a lua cheia fazer amor com as águas. Depois, lânguido como se
tivesse sido ele a penetrar o rio, dormiu sem se preocupar mais com a viagem.
Pela manhã, achou-se encalhado num leito seco e magoou-se com a traição das águas
vingativas que o tinham empurrado para aquele barro endurecido e fétido.
Inconformado, Orêmio pediu
perdão à Perfumada. A tentação de espiar o amor dos outros colocara a
coitadinha em sofrimento. Não ia conseguir tirá-la dali, nem iria abandoná-la
ao sol que racharia o seu casco. Mas como é que foi que eu me arranchei aqui? —
questionou-se, atônito.
Saltou da Perfumada e
sentiu lhe corcovearem as solas dos pés dentro da sandália. O calor que brotava
do barro arrebentado em fendas subia pelas pernas até quase o umbigo,
cozinhando os músculos. Para que lado? — desnorteou-se, procurando algum
destino no horizonte estagnado. Mas nada oferecia esperança. A imensidão sem
gente repousava morta, como o rio sob seus pés. Não entendia o truque. Arre!
Nunca vi rio que seca de repente! —
resmungou para o nada. — Parece até coisa do Encardido! Fechou os olhos,
beliscou os dois braços ao mesmo tempo e estapeou as faces, tentando afastar a
visagem. Antes de espiar novamente, ainda benzeu-se. Duas vezes. Que nada! Nem na
força, nem na reza! O sol sem piedade continuava lá, esturricando o mar de
lama.
Cobriu a Perfumada com uma
lona, salvando-a de morte imediata, e decidiu-se pelo caminho rente à proa. Nem
bem se afastou três ou quatro metros com os pés largos, sentiu o empurrão.
Virou-se, assustado, e estancou sem jeito. Ninguém! Sentiu que por pouco não
borrava as calças. Tomou novo ar, olhou para a Perfumada, pedindo ajuda, e deu
outro passo, gritando para a imensidão: Vá de retro! Apressou de uma vez a
caminhada, afastando-se do barco com passadas decididas.
Sentiu os braços em volta
do corpo sem saber que eram braços. Pensou em cordas, em cipós e, finalmente,
em polvos, mas percebeu que fossem o que fossem, eram macios. Então, um a um
começou a enxergar-lhes os corpos, até que muitos olhos mergulharam nos seus.
Fundo.
— Qu...quem são vocês?! —
sussurrou, incapaz de manter-se homem por mais nem um minuto.
— Almas, almas, almas... —
responderam em coro.
— Asnice! — gritou ele —
Essa coisa de fantasma é conto do vigário!
— Não somos fantasmas.
Somos almas. Almas errantes — corrigiu-o uma mulher idosa.
— Errantes? Quer
dizer…alma penada?
— Sem direção.
— Ora, pois que tomem
rumo!
— Não podemos. Precisamos
de ajuda. — choramingou uma menina.
— E eu com isso?
— Você é o guia — lhe
disse um homem calvo, vestindo terno e gravata.
— Eu?
A coisa tinha passado dos
limites. Não havia sonho ou pesadelo que durasse tanto! Como acordar? Ó,
Senhor! Eu alouquei, é isso? Endoideci e não me dei conta? — agoniou-se Orêmio.
E nisso de se entregar ao desespero e à incompreensão, sentiu uma mão pequenina
apertando a sua.
— Bença, padrinho. Quanto
tempo!
As veias da cabeça
pareciam arrebentar no couro cabeludo. As náuseas converteram-se em vômito e as
mãos geladas, mesmo sob o sol ardente, acusavam a doença que o acometia:
demência. Pois que mais seria aquela peça que os ouvidos lhe pregavam?
Ele acabara de ouvir a voz
de Ritinha, a afilhada que fora encontrada morta num banco de rio havia pouco
mais de seis meses. A mãozinha da criança, que tanto conhecia, apertava a sua.
— Padrinho 'tá doente?
Não conseguiu responder.
Ao seu lado, a menina não parecia gente desencarnada.
— O tempo é tão curto,
homem, nos ajude! — pediu-lhe uma mulher
entristecida.
— O que vocês querem? —
rendeu-se ao sonho.
— Prosseguir — concordaram
todos.
— Para onde? — perguntou, curioso.
— Para o nosso lugar.
— E onde é isso? — insistiu ele, mas ninguém lhe deu mais
resposta.
Orêmio se lembrou da
Perfumada. Parada mais atrás, no meio do leito seco, ela parecia assistir à
bizarrice sem se importar com o curso da empreitada. Esperaria por ele ali, à
sombra da lona que lhe cobria o casco, mesmo que ele demorasse.
— É a Perfumada? — quis
saber a afilhada.
— É sim, Ritinha.
— É a coisa que o padrinho
mais ama em sua vida, não é?
Pego de surpresa, se deu
conta que sim. Nem a mulher, que o esperava de volta a cada viagem, nem os
pais, que fazia muito tinham partido, eram tão importantes quanto o barco.
— Foi por isso que o
padrinho foi escolhido como guia — continuou a menina.
Era a segunda vez que
alguém falava aquele nome.
— O que é isso?
— É um vivente que Deus
incumbe de resolver as pendengas — disse-lhe o homem de terno.
— Pendengas...?
— Os motivos que ainda
prendem por aqui as almas errantes. Que não nos deixam seguir em direção ao
além. Questões não resolvidas, mortes misteriosas, apego excessivo às coisas
humanas, entende? — explicou-lhe uma mulher que, soube ele pouco depois, era
professora.
— E esse guia seria eu...
Como então, não lhe
bastava o ofício da pesca, ao qual se dedicava em vocação, embora sempre sem
saber do amanhã. Agora, Deus brincava com a cabeça dele. Ora! Ele, Orêmio do
Carmo Soares, era um ribeirinho. Homem de águas, de peixes, de Perfumada. O
estudo que tinha devia aos padres do colégio franciscano, onde a mãe fazia faxina
em troca de pouco salário e de instrução para ele. Era pescador como o pai. Das
letras que aprendera a mais que os outros pescadores fazia uso apenas para
cortejar as raparigas, ou para se impor diante de comerciantes velhacos.
— Pois digam a Deus, ou a
quem for que esteja impedindo vocês de irem para o além ou para o raio que os
parta, que eu não sou guia coisa nenhuma! Era só o que me faltava! Não sou. Não
quero ser — disse, afastando-se, emburrado.
— Vai embora? — quis saber
um mascate.
— Vou.
— E a Perfumada? — perguntou-lhe uma moça pálida .
— O que tem ela? Volto pra
buscar — irritou-se.
— E se ela não aguentar a
espera? E se a madeira ficar quebradiça com a secura? — perguntou a professora.
— Eu volto logo, minha
senhora, pode ter certeza que eu volto! — falou, com maus modos.
— De onde? – ironizou um
policial que até então se mantivera afastado.
De onde, Senhor? Voltar de
onde, se eu nem sei em que raios de lugar eu estou?, desanimou.
— Se nos salvar, Deus lhe
salva a Perfumada, padrinho. Esse é o trato.
— Trato...?
— O trato que Ele faz com
o guia. — disse um homem calvo, de terno. — A nossa eternidade em troca do que
lhe é mais caro, mais querido nesta vida. Pelo visto, é a Perfumada, não é?
Orêmio sentiu as pernas
fracas. A possibilidade de nunca mais tocar na Perfumada apertou-lhe o peito. A
companheira dos anos, a confidente de cada noite não podia lhe ser arrancada
por um capricho de Deus. Ele precisava ceder, cumprir, fazer o que lhe fosse
pedido. Perfumada não entenderia uma morte em abandono. Não o perdoaria pela
ingratidão. Seu caminho era o das águas, como o dele. Em vida; na morte. Nunca
aquele leito seco.
Olhando pela primeira vez
para os rostos que o cercavam, percebeu que não seria preciso perguntar-lhes as
histórias. No fundo de cada par de olhos, enxergou as tais pendências que
retinham aquelas almas vagueando pela terra. Viu a vida de cada um. Viu a morte
de cada um. Viu o que tinha que ser feito. A professora assassinada pelo aluno
que tinha reprovado. O homem calvo, de terno, morto por descobrir um desvio de
dinheiro na empresa. O policial assassinado por seu parceiro corrupto. A
senhora idosa que morrera do coração ao ficar sabendo que o marido era
pedófilo. E Ritinha, a afilhada querida, vítima da violência bêbada do
padrasto, e jogada ao rio para que sua morte parecesse acidente. Uma a uma, as
almas colocaram dentro dele as histórias que, mais tarde, a polícia usou para
chegar a novos finais.
O sol já estava se pondo quando
ele retornou, exausto, daquela estranha lida. Despediu-se de cada alma que
seguiu adiante, até que, por fim, viu saltitar em direção à bruma, feliz, a
afilhada Ritinha. Perfumada o aguardava ansiosa, como fazem os amigos e os
barcos velhos. Queria saber das histórias. E ele se deitou dentro dela, e lhe
contou tudo. De como cada alma lhe dissera onde encontrar evidências e provas.
De como vira cada um seguir o seu caminho em paz. De como não sabia como tinha
vivido aquele dia que parecia tão cheio de outros dias. E ela acreditou nele.
Orêmio continua a
percorrer o rio todas as noites. Espia a lua fazer amor com as águas, depois se enrosca com a Perfumada e adormece.
Ele agora tem novo ofício. Espera por manhãs de leito seco.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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2 comentários
Espetacular, Cinhtia! Adorei os nomes, Orêmio e Perfumada! Lindas demais as imagens. Texto delicioso pelo inusitado da história. Se fosse simples assim descobrir crimes insolúveis...
Ah, Cinthia, que gostei de montão!
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