por Celso Sisto
COELHO, Ronaldo Simões;
AGOSTINHO, Cristina. Rapunzel e o Quibungo. Ilustrações de Walter Lara, Mazza
Edições, 2012. 16p.
Velhas histórias
transferidas para novos espaços podem ganhar muitos sabores. Trazidas dos
invernos europeus para as lagoas tropicais, desenham outros cenários, em que
castelos de pedras são substituídos por torres de bambus. E o gosto de ouvir e
contar é regado a frutas: cupuaçu, cajá, umbu, graviola. Tudo isso para fazer
frutificar a memória!
Rapunzel dos cabelos
longos brincava na beira da Lagoa do Abaeté quando foi raptada pelo Quibungo.
Maravilhado com a voz e a cantoria da menina, o papão a fez prisioneira em uma
torre de bambu, para que ela cantasse só pare ele. Mas um dia, o príncipe
Dakarai, que estava caçando por ali, ouviu o canto mais lindo e triste da moça,
vindo da alta torre, por cima da castanheira. Esperou, escutou, viu e aprendeu
como chegar até ela. Daí por diante foi só alegria: frutas e presentes. Mas o
Quibungo descobriu tudo quando notou o colar de sementes coloridas no pescoço
de sua prisioneira. Cortou as tranças da moça, empurrou das alturas o príncipe,
mas não contava com a reação corajosa de Rapunzel e nem com a impossibilidade
de pronunciar as palavras mágicas que o transformariam em morcego, na hora do
perigo.
Rapunzel faz parte das
coleções de contos de fadas e ficou famosa a partir da publicação da coletânea
dos Irmãos Grimm, em 1812, que se chamava “Contos para a infância e para o lar”
(a tradução mais recente, da editora Cosac Naify, chama-o de “Contos
maravilhosos infantis e domésticos”). Os estudiosos do assunto reconhecem que
Rapunzel é uma adaptação do conto francês “Persinette”, que foi publicado em
1697, cuja fonte é atribuída à Charlotte-Rose de Caumont de La Force. Mas na
Itália, a história aparece também, na coleção de contos de fadas de
Giambattiste Basile, de 1634 (O Pentamerone), com o nome de Petrosinella, que
serviu de base para Charlotte.
Situar a história na Bahia
já desenha todo um novo contexto para a mais que conhecida história de
Rapunzel. O uso de elementos tropicais, como as frutas locais, as árvores
locais, a cultura local, trazem um curioso (e gostoso) aparato para o conto
clássico, herdado da tradição oral europeia. Agora são os trajes africanos, a
comida à base de mandioca, peixe e farinha; o bicho-papão africano, conhecido
como Quibungo que assumem o lugar de signos e símbolos nessa “nova” história.
A velha bruxa dá lugar ao
Quibungo, o bicho peludo, com bocarra nas costas, onde atira, mastiga e engole
as crianças. O mito chegou ao Brasil através dos bantos e se instalou na Bahia.
Curiosamente, em Angola e no Congo, quibungo significa “lobo”. Um devorador
largamente conhecido pelas crianças! Um terror suportável! Um terror desejável,
porque as crianças adoram as histórias que provocam susto e arrepios!
Cortar os cabelos também
carrega uma grande simbologia. Além da força física, sedução e vaidade, os
cabelos da cabeça estão ligados às questões espirituais. Na história de
Rapunzel também significa sua passagem de menina a mulher. Aliás, para ficarmos
no contexto dessa nova Rapunzel, vale lembrar que há uma divertida lenda
africana que explica o fato das mulheres terem cabelos compridos.
E para completar os
elementos dessa adaptação, temos os versos com que o Quibungo e o príncipe
Dakarai chamam Rapunzel. O monstro diz: “Rapunzel, Rapunzel/a comida está
aqui;/Rapunzel, me obedeça/deixe o cabelo cair”. O príncipe diz: “Rapunzel,
Rapunzel/me escute, linda criança;/Rapunzel, Rapunzel, jogue aqui a sua
trança”. E a musicalidade da história é mantida. E a ação provocada pelo medo
instintivo torna-se um ato de alegria, pela primeira vez.
Pois essa alegria,
temperada de sorrisos e amor à primeira vista serve de contraponto para a
maldade e o desejo de vingança do monstro, que depois vai acusar o príncipe de
“querer roubar sua criança”. Essa, é a luta “espiritual” dos contos de fadas,
que se concretiza com a união no casamento.
Como a punição é também
prerrogativa do conto de fadas, nosso Quibungo tem um fim estrondoso e o casal
vai viver perto do povo a que o príncipe descende, “onde viveram juntos pelo
tempo afora”, tramando de outra forma o “felizes para sempre”, aproximando-o da
tribo e da coletividade.
As ilustrações reforçam os
elementos afro-brasileiros e os tons de terra. A capa é contundente! O olhar da
menina Rapunzel é de uma força inebriante! O uso das cores marrons e vermelhos
criam uma unidade tão forte que quase nos obriga a abrir e a seguir sem parar o
livro.
Os adaptadores Ronaldo
Simões Coelho e Cristina Agostinho são bastante reconhecidos e premiados. O
ilustrador Walter Lara trouxe das artes plásticas toda sua experiência. O
resultado é lindo!
Esse texto foi
originalmente publicado no site: http://www.artistasgauchos.com.br/
Celso Sisto
é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá
(RJ), ator, arte-educador, crítico de literatura infantil e juvenil,
especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da
Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de
histórias espalhados pelo país.
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Um comentário
Querido Celso Sisto, encontrei este livro em 2013 e simplesmente fiquei apaixonada, eu e minha colega trabalhamos com este revisitamento na escola, bem como " Joãozinho e Maria". São maravilhosos!
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