Neli Germano: memória e
crítica ao presente
Sidnei Schneider
A poesia “extrai sua
origem da emoção relembrada na tranquilidade”, afirmou William Wordsworth
(1770-1850), poeta romântico inglês demasiado sentimentalista para os dias de
hoje, no prefácio às suas “Baladas Líricas” (1798).¹ Sua postulação indica, no
entanto, a necessidade de um distanciamento entre a experiência e sua
transfiguração em poesia, capaz de agradar a um poeta refratário à inspiração e
à escrita espontânea como João Cabral de Melo Neto, que certa vez disse: “Com
emoção não se faz poesia”.² Cabral substituiu-a pela arquitetura planificada e
pela razão que decide o máximo que pode (já que perduram aspectos
inconscientes) cada detalhe do poema, ficando a emoção para o deleite do
leitor. Mais ou menos o que diz Fernando Pessoa “ele mesmo” em Isto: “Sentir?
Sinta quem lê”.³ Assim, o tempo entre o vivido e a sua objetivação em poesia
seria tanto o da maturação da experiência quanto o do intenso trabalho poético.
Esse produtivo
distanciamento é flagrante em “Casa de Infância” (Gente de Palavra/Fumproarte,
2014), livro de estreia da poeta Neli Germano, através da visão de uma criança
reelaborada na tranquilidade e na idade adulta: “Minha mãe amava juntando latas
de azeite vazias,/ e meu pai, à noite, desmanchando-as com suaves marteladas,/
até tapar todos os buracos dos nós das tábuas./ Logo nasceria um bebê,/ minha
mãe teria que se proteger do minuano/ na quarentena” (II). Percebe-se um tom a
um só tempo crítico e compreensivo, como se a voz poética evidenciasse a
necessidade de certas situações sociais não se repetirem jamais e igualmente
compreendesse e até perdoasse as ações dos pais quando eventualmente lhe
causaram apreensão ou dano, pois constata o esforço que fizeram. “O pai dizia
que menina não podia andar/ De bicicleta, que era coisa feia pra mulher// Santa
teimosia a da minha irmã/ Eu como não batia pé// Só falava com meus botões/
Fiquei a ver bicicletas” (XXXVII).
Numa carta ao colega
Wilhelm Fliess, de 1896, Sigmund Freud depreende a estratificação da memória:
“o material presente sob forma de traços mnêmicos fica sujeito, de tempos em
tempos, a um rearranjo de acordo com as novas circunstâncias - a uma retranscrição”.?
Desligados uns dos outros, esses traços não se elevam ao que pode ser
recordado. A escrita e a leitura de poesia eventualmente possibilitam, como o
faz mais detidamente a clínica psicanalítica, um encontro com o até então
perdido. Mesmo João Cabral, que não desejava ser mero escravo do inconsciente,
tinha noção clara da sua existência e ação, tematizada inclusive no poema
Dúvidas apócrifas de Marianne Moore.? Se a matéria de um poema não precisa
depender inteiramente do vivido, pois do contrário haveria pouco lugar para a
imaginação, também é verdade que não é possível aos seres humanos imaginar ou,
mesmo durante as horas de sono, sonhar algo que não tenha algum liame com o
mundo objetivo. Em “Casa da Infância” não há somente descrição poética da realidade,
pois é do ser humano modificar algo de sua história toda vez que a reconta
ainda que não se aperceba disso, maneira pela qual pode recuperar aqueles
traços que de outra forma não se uniriam a algo para se elevar de suas
profundezas. Mais, há criação de linguagem, escoimada para causar efeito
estético e crítico.
Deste modo, tomar “Casa de
Infância” apenas como produto da experiência de alguém, da poeta Neli Germano,
não resultaria na leitura mais profunda e significativa. Seria tentativa inútil
de recusar-se a si mesmo e depreciar o trabalho artístico. Leitura de poesia
envolve construção de sentido realizada pelo leitor, a partir da sua
experiência de vida, dos conhecimentos e valores adquiridos, das leituras
anteriores, etc. E a poesia de Neli tende, isto sim, a gerar estranha e
familiar cumplicidade.
Se a retomada da infância
comporta algo de lirismo, no sentido de ser uma visita ao interior do sujeito,
também é um olhar sobre a vida do lado de fora, já que ambas as visadas nos
pertencem e interagem continuamente. O ponto de vista em “Casa de Infância”,
que é o da criança e sua percepção do mundo, não é exatamente infantil, pois se
trata de uma escrita e um olhar a posteriori. Também não se enquadra naquele
olhar de classe média, hiper-representado em termos de produção literária.
Não, o ponto de vista aqui
é o dos que trabalham muito para sobreviver, distantes do modo de vida do
restrito grupo dos que recolhem a riqueza produzida por quase todos e também do
modo de vida dos referidos setores médios, que tendem a oscilar entre a aliança
com o povo, enquanto nação, e a submissão inconsciente à “cultura” e aos
interesses dos monopólios e da agiotagem internacionais, que sugam a todos. A
representação do trabalho, doméstico ou profissional, ressalte-se, é uma
constante: “Pari meu terceiro filho no engenho,/ onde tempos nos serviu de
morada./ Antes de a parteira chegar,/ inda busquei trato pra criação:/ um saco
de batata.” (XXXIX).
Significativos e
impactantes são, também, os poemas que tratam do trabalho das crianças:
“Ensaboar - enxaguar/ Secar louça - guardar/ - Deixa de ser lerda - dizia minha
mãe// Ser lerda é brincar de faz-de-conta/ Refletir-se nas bolhas de sabão”
(XIII); “A mãe dizia: asseio é coisa de Deus!/ Mas quem limpava tudo era ela
mais eu e minha irmã” (XVII); “A canoa virou/ por deixarem ela virar/ foi por
causa.../ Nunquinha que eu podia deixar a canoa virar!/.../ Então preferia
manejar aquele remo pesado com/ minhas mãos pequenas, não apreciar a paisagem”
(XLI).
Se em “Casa de Infância”
uma crítica é tecida ao que a voz poética evoca - as antigas musas da arte
atendiam também pelo nome comum de mneae, recordações - essa crítica é mais
ampla do que inicialmente parece, pois se dirige à realidade presente e aos
leitores de agora.
Referências
bibliográficas:
¹ WORDSWORTH, William.
Complete Poetical Works. Boston; Nova York: Houghton Mifflin Company, 1904.
² MELO NETO, João Cabral
de. Entrevista a Cristina Serra, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, n.
201, 18 mai. 1986.
³ PESSOA, Fernando. Obra
poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
? FREUD, Sigmund. Carta
52, in A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. Rio de
Janeiro: Imago, 1986.
? MELO NETO, João Cabral.
Dúvidas apócrifas de Marianne Moore, in Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova
Aguilar, 1995.
Serviço:
Lançamento: Casa de
Infância (poesia), de Neli Germano, editora Gente de Palavra, financiamento
Fumproarte. Com performance deTiago Demétrio, Fernanda Rizzollo e outros.
Quando: 10 de Setembro de
2014.
Onde: Mezanino da Casa de
Cultura Mario Quintana, Porto Alegre.
Horário: 19 horas.
SIDNEI SCHNEIDER é poeta, contista e tradutor. Publicou
os livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer,
1999), a tradução Versos Singelos-José Martí (SBS, 1997) e o volume de contos
Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, 2001), Antologia do Sul (Assembleia Legislativa,
Porto Alegre, 2001), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis,
2011) e de mais de uma dezena de antologias. 1º lugar em poesia no Concurso
Talentos, UFSM (1995), 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu,
UFRGS (2003) e outras premiações. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.sidneischneider@gmail.com
Nenhum comentário
Postar um comentário