Artigo publicado no site Obvious
A experiência sensorial do
livro e o prazer de ler.
Desde que me entendo como
leitor cumpro este ritual: antes de ler um livro abro-o calmamente e cheiro.
Todo leitor que se prese já cheirou algum livro. Há quem quem entre em
livrarias apenas para dar uma boa fungada entre as páginas de um calhamaço.
Alguns preferem o cheiro de livros novos, outros de livros antigos e
empoeirados. Mas afinal de contas, por que cheiramos livros?
Este é um dos grandes
mistérios da humanidade. Um ato que repetimos pelo prazer, sem preocuparmos com
os motivos que nos levam a amar o cheiro de livros. Isso conforta e nos prepara
para a leitura, especialmente dos livros maiores ou mais difíceis. Cheirar as
páginas de Guerra e Paz, da Divina Comédia ou das Crônicas de Gelo e Fogo é uma
espécie de fôlego inicial antes do mergulho.
Acredito que cheiramos
livros como parte do processo de memorização. Toda leitura é um ato de
envolvimento corporal em busca de aprendizado. Mesmo quando lemos casualmente,
a leitura se mostra um ato de compreensão, conexão e entrega. Precisamos manter
um capítulo em mente para passarmos ao capítulo seguinte, precisamos manter
frescas as sensações da trama para chegarmos ao desfecho da história. E mesmo
assim, muitas vezes após terminarmos um livro, só conseguimos recordar de
alguns pontos chaves. Nossa memória é intrinsecamente seletiva e falha. O
cheiro do livro funciona como uma âncora entre a realidade e o mundo construído
página depois de página. O cheiro, o peso, a textura do livro, tudo isso
funciona como um farol que nos faz lembrar de momento em momento que estamos
aqui, dentro do mundo real, e ainda assim em Hogwarts, Nárnia ou em Westeros. O
cheiro é só uma parte deste mecanismo.
Mesmo que muita gente ache
que livro tem sempre o mesmo cheiro, eles são compostos de materiais
diferentes. Papéis de variadas gramaturas, cola, costura, tinta, capa de tecido
ou couro, e a isso soma-se a poeira que se acumula nas lombadas, os dedos que
correm as páginas, o tempo que permanecem fechados. É um fato óbvio, mas que
acabamos por esquecer: livros são feitos de matéria orgânica. São basicamente
fibras vegetais que depois de mantidas fechadas por um determinado tempo,
reagem entre si e produzem um cheiro característico. Um livro parado numa
estante está em constante mutação.
Shakespeareandco.JPG
Shakespeare and Company, em Paris. Livraria célebre pelos autores do passado e
pelo cheiro. Foto do autor.
Li certa vez O
Estrangeiro, de Albert Camus, em exemplar novo e depois em outro usado. O livro
novo me pareceu virgem, jamais lido por ninguém além de mim e do autor. Era uma
descoberta absoluta, como se abrisse caminho por uma vereda jamais pisada. O
mesmo livro usado, comprado num sebo, parecia algo diferente, quase sagrado,
como um manuscrito perdido, uma bussola usada por outros tantos leitores antes
de mim. O conteúdo era o mesmo, o que mudou a minha percepção do livro foi a
textura do papel, a cor das páginas e o cheiro. As duas leituras foram
prazerosas e distintas, cada uma me mostrou um livro diferente.
Em tempos de e-books e
ascensão da leitura digital, são as experiências sensoriais provocadas pelo
livro de papel que garantem a eternidade deste objeto que amamos. O livro é um
objeto de impossível compreensão total e ainda assim muito simples. As duas
capas servem como um muro entre o que foi dito e o que não foi. Desde o começo
da história do livro, lá na Suméria de 3000 antes de Cristo, as tabuletas de
argila serviam para testificar uma coisa dita. Esse processo evoluiu por outros
formatos, passando pelo papiro, pelo pergaminho, o códex até chegar em Gutemberg.
Já se fez livro de tudo quanto é coisa. Pedra, pau e casca de tartaruga.
Escrevemos em muitos objetos, das cavernas de Lascaux até as latinhas de
Coca-Cola. Mas só o livro, com capa, contra-capa, orelha e lombada cabe tanto
de pé na estante quanto no colo. Abertos na mesa ou dentro da bolsa.
O livro se tornou essa
coisa certa, esses "objetos transcendentes" de Caetano, porque foi
feito para o tato, o olfato, foi feito para o corpo. Frágeis como nós, se
aquecidos a 451 fahrenheit viram cinzas nas fogueiras nazistas. Se molhados
desmancham-se e apodrecem, tornando a ser o que são, coisa orgânica passível de
perecer. Talvez um dia no futuro nos acostumemos a ler apenas digitalmente.
Recentemente testei um aplicativo que promete acelerar a leitura com palavras
que se projetam na tela na velocidade de até mil palavras num minuto. Talvez
aprendamos a ler como o personagem virtual do filme Ela, conectando-se a
diferentes assuntos ao mesmo tempo. Seja lá o que isso será, não será leitura.
A leitura envolve o físico, ao virtual cabe a informação.
Livros de papel não
terminam no final. Estarão na estante esperando o momento de uma segunda
leitura, um correr de páginas ou de uma boa e velha fungada. Bons livros ficam
gravados em nós, e através do cheiro podemos dizer que deixamos uma parte de
nós também gravada neles.
Livreiro, escritor e
apaixonado pelo mundo dos livros.
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Um comentário
Roubei sua foto da biblioteca junto à escada.
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