Era uma vez... nos tempos da escrita mecânica...
Publicado originalmente no blog: Pensados a Tinta.
”(...) me assediam de improviso, irreverentes e
importunos, cinco agentes de clubs.
Offerecem, risonhos e palradores, perfeições e
vantagens de apparelhos modernos que, a se lhes crer nas affirmações, vêm dar
ao cerebro e á emoção o desvalor de inutilidades por não terem mais de
funccionar!
As cellulas se fossilisarão e o grande sympathico
torna-se-à uma surfluidadeenigmatica, como appendice! O coração, esse censor
sensitivo restrictamente um musculo! Insiste, um delles, porque me inscreva em
um club de sorteios seriados para a acquisição de um apparelho de calculos e de
uma machina, a seu dizer, no seu bojo indecifravel de pequenas engrenagens
dentadas e de fios correntes.
Oh! A machina de escrever!
Decididamente a mecanica se alonga da limitação nobre
em que se mantivera até bem pouco, da pura utilidade industrial, ao campo
abstrato das especies emotivas!
Transpõe as fronteiras de sua acção pratica e digna,
para pretender penetrar, com detrimento e affronta, a esphera íntima das mais
delicadas expressões de nossas subjetividades (...): a alma, o eu recondido
(...)" que tenta substituir "(...) pelos frios e inexpressivos signos
de impressão mecanica a graphia espontanea e palpitante, que cunha e expõe a
face phisica, a alma de quem traçou, de quem escreve...
Ah!..." (Fon-Fon! 22/04/1911)
Adequar
subjetividades aos suportes: esse é o desafio do escritor no desempenho de seu
ofício.
A
escrita impressa encontra sempre suportes que a sustentem: foi assim com a
argila, a pedra, o couro, pergaminhos.... até chegar ao papel.
As
ferramentas dessa intermediação foram muitas: de formas pontiagudas em sua
maioria, faziam a palavra ser vincada em seu suporte. Impressão fixa de uma
ideia, de um pensamento, de um desejo, de um decreto real, até de uma fantasia.
Transcorridos
os séculos, a relação entre escrita e escritor era íntima, quase sem
intermediários. Destes tempos era apenas o escritor, o papel, a tinta e a pena.
Dessa
relação íntima, resultavam impressões de próprio punho. Emprestavam marca e
densidade ao escrito. Pesavam sobre o papel, desenhavam tipos e ideias, em
curvas e sinuosidades. O silêncio imperava: sobre o escrito jazia apenas o som
do punho deslizando e atritando contra o papel.
Com a
mecanização do escrito, vários escritores sentiam roubada sua alma e começa a
haver, em sua perspectiva, um mediador. Intermediários entre punho e papel, os
tipos gráficos registravam as ideias não em curvas, mas diagramadas e
esquadrinhadas em linhas e formas retas. As tintas mecânicas vinham em fitas
que marcavam o papel com uma grafia predefinida, igual para todos os escritos e
escritores. Os tons eram de pequena gradação: preto, azul e posteriormente o
vermelho. Uniam em um mesmo tempo a ideia e sua materialização por meio da
impressão de tipos gráficos. Surgiram em tamanhos igualmente predefinidos, uma
como minúscula e outra como maiúscula. Como uma cicatriz, as palavras assim
vincadas ganhavam um tom de permanência bem diverso do sentido que hoje
conhecemos, com impressões superficiais a jatos de tinta. Estas últimas, ganham
um espaço sobre o papel sem imprimir-lhes uma marca indelével.
A
escrita assim materializada tinha o som metálico dos tipos que encontravam a
fita e imprimiam as ideias sobre o papel. Essa sonoridade foi-se transformando
à medida que novas tecnologias eram inseridas.
Cada
conjunto de palavras e pensamentos, explodia em sons e, quando bem cadenciadas
traziam o som de ideias como que a dançar. Como um balé, as palavras impressas
e sonorizadas traziam materialização ao invisível e sensível.
Eram
sons metálicos que traziam ruído às tintas do escrito.
Pouco
a pouco, os escritos ruidosos e metálicos, passaram a timbres elétricos até seu
quase silenciar: hoje só interrompido pela imitação dos mesmos nos toques em
telas digitais.
O
ritual de escrita mecânica era coreografado por outros sons e movimentos. O
papel colocado no rolo onde os tipos mecânicos batiam, seguidos de tempos em
tempos e de acordo com o ritmo e capacidade de digitação de seu escritor por
tilintares onde uma manivela indicava a mudança de linha e a construção de
outros parágrafos. O espaço entre cada palavra era marcado por um outro ritmar.
E de som em som tinham-se uma harmonia discursiva. Postas e expostas as
palavras ganhavam sentido.
Tal
como no "Concerto da máquina de escrever", que te convido a ver.
Fique atento aos sons e ritmos.
A
escrita era portanto, feita de métricas e obstáculos a vencer: tempo e
velocidade onde as palavras podiam compor registros e ideias, número de páginas
concluídas, quantidade de erros e páginas amassadas.
As
ideias precisavam ser encadeadas de maneira a fazer sentido e quanto menos
erros melhor. Não admitiam emendas posteriores. A escrita surgida quando limpa
e organizada apontava a segurança e confiança de um autor ante seus pensamentos
e ações. Inspiração materializada! O original nascia como tal: sem inscrições
que anulam e apagam o que está a posteriori como vemos nos escritos digitais.
E era
assim que a relação escrito e escrita mecânica se constituía.
Uma
relação tátil, onde os toques nas teclas serviam de ponte entre ideias e papel.
Aqui, a escrita é linear, bruta. Só palavras. O movimento da escrita advinha
das ideias e não de artifícios de imagens, sons, vídeos, links e hiperlinks que
nos habituamos a ver. A palavra ancorava e sustentava o escrito. Os escritos e
seus escritores eram densos, robustos. Sem superficialidades ou pressa. Tempos
do poder da palavra.
A intimidade das tintas, sob essa ótica, só pode ser conhecida pelo que entrega
às palavras seu transito de pensamentos. O território das palavras é feito de
muitas idas e vindas. De mergulhos em desfiladeiros de imagens, sons,
ideias....
Daí a
paúra do articulista da Revista Ilustrada Fon-Fon! ao descrever o que para ele
seria a invasão da máquina ao espírito criativo do escritor.
Resistências
à parte, em curto espaço de tempo a invenção mecânica começou a ganhar adeptos
na mesma proporção em que anúncios cresciam nos diferentes meios de
publicidade. Acompanhe alguns exemplos onde diferentes itens eram oferecidos
como composição de um escritório ideal: dentre eles, a máquina de datilografar
era item indispensável.
Até
mesmo a resistência mecânica de suas teclas era colocada como atrativo
fundamental na definição de um modelo. A Remington nos anos 1910 surgia como
grande inovadora e possuidora do mecanismo mais que desejável pelos
considerados escritores modernos. A modernidade era alemã!
O
tempo passava, é a máquina de escrever começava a se transformar em um objeto
de desejo. Sugerida inclusive para ser item um pessoal a ser presenteado.
Como
sempre e transcorridas as décadas, a máquina de escrever ganha um ar saudosista
quando comparada às escritas digitais. Penso que talvez isso decorra de ser um
intermediário que poucos temos condições de ter hoje em dia. A escrita de
próprio punho ainda é possível no momento que quisermos. Mas ter uma máquina de
escrever significa destinar-lhe um espaço único em nossa vida. Ela não se
presta a outras distrações e utilidades, tal como ocorre com os gadgets que
temos à nossa volta. Quem a possui é para escrever. Um exemplo, é um artigo do
ator Tom Hanks no New York Times falando sobre seu prazer com sua máquina de
escrever. Leia aqui:
Essa
relação de intimidade e proximidade entre instrumento e obra foi também
explorada e captada em um ensaio fotográfico intitulado: "Autores famosos
e suas máquinas de escrever", disponível no site Flavorwire, e que você
pode ter o prazer de ver aqui:
Não
somente fora do Brasil essa paixão perpassou vidas e interesses de escritores.
Nossos mais conhecidos casos são as correspondência trocadas entre Mário de
Andrade e Manuel Bandeira. Nas palavras da pesquisadora Mônica da Silva Mota Pimenta:
"(...)
Até abril de 1925, as cartas enviadas por Mário de Andrade eram escritas à
caneta, mas, a partir de então, ele compra a sua máquina de escrever, através
do “processo amável das prestações” (MORAES, 2001, p. 200). Comunica a novidade
a Manuel Bandeira, numa carta escrita em dezoito de abril, e partilha sua
alegria pela compra que foi feita. Conta estar atrapalhado para escrever
diretamente nela, segundo Mário, parece que a “ideia foge com o barulhinho” (p.
200). Mas, otimista, afirma que isso será passageiro, que logo se acostumará
com ela. Como mais uma demonstração de amizade e carinho por Manuel Bandeira,
faz-lhe uma homenagem:
Manuel do coração,
comunico que comprei esta máquina. [...] E agora já
sabe: quinze minutos que seja de descanso, estou na frente da Manuela batendo
tipo sem parar. Manuela é o nome da máquina, por causa de você. Inventei
agorinha mesmo isso. Não refleti nem nada: ficou Manuela. Assim a homenagem
saiu bem do coração (p. 200).
Manuel Bandeira, quando responde a carta, em seis de
maio, parabeniza o amigo pela compra e comunica que também receberá uma máquina
e, em retribuição à homenagem feita, procura um nome para ela. Pensa em
Mariana, Maroquinhas e acaba pedindo a Mário de Andrade, como “padrinho”, que
escolha o nome a ser dado. O “padrinho” aconselha não usar diminutivo e sugere
Mariona. Numa carta escrita em 13 de setembro do mesmo ano, Manuel informa “Não
há meio de "Marocas‟ chegar!” (p. 236) confirmando o nome que receberá a
sua máquina. (...)"
E se
como eles, você está disposto a destinar tempo e espaço para uma delas, que tal
contemplar algumas?
Seguem
algumas sugestões, veja aqui:
Enquanto
isso, já no século XXI:
E
como nota final, deixo o poema de Giuseppe Ghiaroni, e um tributo do cinema a
essa invenção mecânica que tanta arte produziu numa interpretação deliciosa de
Jerry Lewis:
A MÁQUINA DE
ESCREVER
Mãe,
se eu morrer de um repentino mal,
vende
meus bens a bem dos meus credores:
a
fantasia de festivas cores
que
usei no derradeiro Carnaval.
Vende
esse rádio que ganhei de prêmio
por
um concurso num jornal do povo,
e
aquele terno novo, ou quase novo,
com
poucas manchas de café boêmio.
Vende
também meus óculos antigos
que
me davam uns ares inocentes.
Já
não precisarei de duas lentes
para
enxergar os corações amigos.
Vende,
além das gravatas, do chapéu,
meus
sapatos rangentes. Sem ruído
é
mais provável que eu alcance o Céu
e
logre penetrar despercebido.
Vende
meu dente de ouro. O Paraíso
requer
apenas a expressão do olhar.
Já
não precisarei do meu sorriso
para
um outro sorriso me enganar.
Vende
meus olhos a um brechó qualquer
que
os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo
na sombra pardacenta,
refletindo
um semblante de mulher.
Vende
tudo, ao findar a minha sorte,
libertando
minha alma pensativa
para
ninguém chorar a minha morte
sem
realmente desejar que eu viva.
Pode
vender meu próprio leito e roupa
para
pagar àqueles a quem devo.
Sim,
vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta
caduca máquina em que escrevo.
Mas
poupa a minha amiga de horas mortas,
de
teclas bambas, tique-taque incerto.
De
ano em ano, manda-a ao conserto
e
unta de azeite as suas peças tortas.
Vende
todas as grandes pequenezas
que
eram meu humílimo tesouro,
mas
não! ainda que ofereçam ouro,
não
venda o meu filtro de tristezas!
Quanta
vez esta máquina afugenta
meus
fantasmas da dúvida e do mal,
ela
que é minha rude ferramenta,
o
meu doce instrumento musical.
Bate
rangendo, numa espécie de asma,
mas
cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando
eu morrer, quem a levar consigo
há
de levar consigo o meu fantasma.
Pois
será para ela uma tortura
sentir
nas bambas teclas solitárias
um
bando de dez unhas usurárias
a
datilografar uma fatura.
Deixa-a
morrer também quando eu morrer;
deixa-a
calar numa quietude extrema,
à
espera do meu último poema
que
as palavras não dão para fazer.
Conserva-a,
minha mãe, no velho lar,
conservando
os meus íntimos instantes,
e,
nas noites de lua, não te espantes
quando
as teclas baterem devagar.
Giuseppe
Ghiaroni
Eliana Rezende. Formada pela
Unicamp de Campinas, é Consultora em Gestão de Informação & Memória
Institucional, Curadora e Produtora de Conteúdos e Docente EaD. “A História
entrou pela minha vida através da magia da leitura. A curiosidade infantil
acrescida de uma imaginação feroz me fazia boa ouvinte de histórias lidas e
contadas pela minha mãe...”. Página na Internet: Pensados a Tinta
Todos os direitos autorais são reservados a autora.
Revista Biografia
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