AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (30ª postagem) [Rubens Jardim]
Despeço-me do mundo
como quem arruma bolsas
para um fim de semana.
A vida abriu a boca
e
ouvi verdades desconhecidas.
Calço pantufas e flutuo serena
sem pressa.
Feito um pássaro que abre as asas
e se dilue no horizonte.
Despeço-me numa paz silenciosa.
DESTEMPERO
Canto como quem risca a pedra,
(Hilda Hilst)
Nunca serei comedida.
Do tronco velho de meus versos
as palavras escorrem
dilacerações sem pudor
secreções de morte e vida.
Sou um animal comovido.
CARIMBO
A memória do tempo
deixa seus sinais:
nódoas de dedos
nas folhas da janela
marcas de suor
nos óculos inúteis da avó
esquecidos no fundo da gaveta.
No suspiro de um susto
ela está diante de mim e inteira
as chaves na cintura
o coque grisalho
os olhos de desespero
os gemidos da agonia.
Tempo de sobressaltos.
A ameaça da morte vem,
como uma espada pairando acima
atada a fino fio de cabelo.
O coração desembestado
ó nó na garganta:
cravados em mim
por toda a eternidade
.
VISITA
— Menina, pega no cabideiro
o chapéu do compadre
que ele já vai com pressa!
No feltro do chapéu do compadre
um cheiro entranhado de suor salgado.
Aroma desconhecido.
Naquele chapéu descubro
o cheiro de homem
e era tão bom
e com tanta gula cheirava
que em encantei
até o pecado.
Callas na escala ascendente
Inteira,
tua voz é um cone,
torre de catedral,
coisa tátil, que se avista,
mutável como caleidoscópio. É fósforo,
poço de petróleo: força que se arremessa
das profundas da treva e que
(de chofre)
perfura com sua agulha as nuvens
para ganhar penugem de pássaro
e adejar (mui devagar)
sobre o espírito.
Foguete é tua voz em busca do buraco negro
(olho terceiro)
turbina que se aquece entre coração e cérebro
e desenha ogivas de ignoradas paragens –
onde leio flor, lâmina
arcaica letra grega
que não entendo
mas que se inscreve no mármore dos altares.
Boi no pasto
Boi no pasto não tem patas.
Bóia as banhas ondulantes
sobre as bordas do capim
que (marítimo de ervas)
em superfície o conserva.
Está no seu elemento
e todo esterco trescala
ao verde que ele abate –
ilhas já dessa paisagem.
É o campo que se alevanta
no negro musgo do estrume
por seu turno resgatando
a larva à própria lavra.
Boi no pasto não tem peias
nem a terra lhe é fronteira.
Retrato de mulher de frente
De tanto esperar pelo meu olhar,
enrubesceu. Aguardou-o
anos a fio
mas emana dela ainda
a mesma timidez
igual esperança. Há
(quem sabe)
uma indagação impossível
na boca rubra e natural.
A aura do objeto
mistura-se a seu cabelo
como se a existência
tivesse transcendido o momento
em que por certo nos encontraríamos.
Malgrado estar eu aqui –
tudo nela ainda espera por mim.
Fruto proibido
Com suas nádegas lascivas de mulher
a maçã deita de costas
na cesta sobre a mesa.
Já de batom está pintada,
armadilha edênica no seu poço
- no ponto da voragem,
caverna de pevides.
Drácula, penetro
no seu espírito interdito,
no jardim das delícias.
Cometo (insensato)
a grande virtude capital.
(O mapa)
a palavra água molha
o verso e beija
e seus olhos atrás do meu
olhar quando o silêncio
atravessa a noite:
o território líquido
das distâncias sem dor
a morte de d. manhã
Fechamos as janelas brancas
com o mais suave lençol de linho
— Repara o sol febril e essa brisa mourisca entre dormir entre velar o sono dos confins.
— Repara também Nossa Senhora das Horas passando de seu exílio errante.
Há tanta luz, vê um rei, ele também passa pela janela
e esse rei era o amor que iluminava a rua
e o vestido rendado
rondando a manhã tão belo que a morte nem precisava.
A casa sisuda cerrou os vidros e cobriu
de sombras zumbiu a unção chuvosa da minguante.
A Senhora D. Pomba no parapeito
rompeu a adormecida manhã no abismo das velas de agosto.
Agora pisamos leve o seu reino misterioso e cobrimos
essa manhã de algodão
com o mais suave lençol de linho
a casa
[tema para a colheita das águas]
no espelho
diante de meus olhos
reluz o barro da moringa
no segredo que guarda
a água
nós dois
eu e o espelho
bebemos o tempo
bebemos as paredes
carpimos o vento
e a tábua
da madeira os móveis
as cadeiras
a mesa que resiste
feito alma
no meio da sala
e a mão que
antes derramava
a água espelhada
nos copos insiste
límpida banha
o sal dos minutos
lava
nosso corpo sobre
o rio se à noite
as corujas riem
piam ao redor
como fantasmas
que o tempo
na casa das horas
passa
e meu retrato
feito de água
é vidro
segue a carne do rio
e recolhe as folhas
no vestido
que a correnteza
espalha:
colhemos o fruto
comemos o pão
guardamos amores
lavramos o chão
Bestiário
a minha guerra será a tua guerra
não a guerra dos homens
mas a dos pássaros desgarrados
o nosso bestiário será esse
o do contrário nunca jamais
e a minha casa será a tua guerra
o nosso bestiário será esse
o do contrário e dos urubus diários
e a minha carne será a tua guerra
o nosso bestiário será esse
o dos monstros submersos que eunoé lembrará
quando a minha cruz for a tua guerra
então o nosso bestiário será esse
canto perdido sem prumo retalhado
sem dor sem beleza nem terra
e então a minha guerra será a tua guerra
DOS TERRITÓRIOS
(UM ROTEIRO)
Prestes a romper
o cerco,
não mais contra-
cenar com seus
senos e co-
cientes.
Sem pensar
duas vezes, dis-
pensar sentidos
e sentinelas, re-
baixar a guarda
de fronteiras,
proscrevê-la.
Abolir alfândegas,
clãs e destinos.
Sem prós e pós-
tumos túmulos,
decepar a rosa
dos rumos,
dissipar ventos
(oito deles),
despir-se de
pares e díspares.
Minar
a margem
(terceira)
de um rio
anônimo.
Extra-
ditá-lo.
Ruído
Conchas dispersas
pelo mar de muros
O raso das antenas
Empoçada no côncavo
Coados fatos, feitos e dito
Incide outonal
Elipse de um silêncio demarcado
o que o silêncio circunscreve.
Em volta do fogo ausente,
as cadeiras eram arestas
a serem limadas por sinais
amenos (wouldn’t you come
emitidos de longe: closer?)
um certo tecer de fio indistinto enleia,
ao eixo do retrós, imóvel redemoinho
de sílabas, segredos a fio,
(a drop of something?) des(no,)vela
e, lenta, retrossegue
(not yet.), sem ceder.
A voz dele sela à cera
(impossible to draw...)
o que a dela silencia.
De um arabesco celta
onde o fio da meada?
(...a woman)
De uma fotografia anônima
De porcelana, e a pele, máscara em branco ri
rente à face, e nesta sorriso menos, minguante.
Posam modelo e máscara entre tecidos, vasos
afilam ao fundo, da cerâmica abaula cada lustre.
Anônima. Jovem, peito descoberto, deitada segura
máscara junto ao rosto, ela à mostra até a cintura.
Prova sobre papel albuminado a partir de negativo
de colódio úmido em chapa de vidro; cerca de 1870.
Seminua, só pele entre estampas e dobras, exposta
ao tempo, até que a imagem, até o sorriso ceder em.
Gravado entre dentes, porcelana, já o riso em branco,
algo assombra, talvez por imune ao tempo, a sombra.
Um comentário
O que aconteceu com o link http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.br/2013/09/39-obras-de-hannah-arendt-adorno.html?m=1 ? T.T
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