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Do filme Sombras da Noite |
O quarto assombrado
Moro num apartamento em um
prédio que tem mais de 60 anos, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Na época da
sua construção, eu era ainda criança. Lembro-me da alegria do simpático
português que se casou com minha tia, ao ver o edifício quase concluído.
Casaram tarde em idade para a época. O
certo é que a construção ainda não estava pronta para ser habitada, quando o
consorte da minha tia morreu. Infarto fulminante! Dizem as más línguas que foi
por contrariedade porque minha tia não apreciava as relações conjugais. Mas
outros disseram que foi pelo esforço de subir as escadas do prédio ainda sem
elevador, por várias vezes durante a semana.
Esse esforço era pra ver como ia o acabamento da obra. E talvez sonhar
com o dia da mudança. O certo é que o português foi-se, com menos de um ano de
casado com minha tia. A escritura do
imóvel demorou a sair com sua morte, e
por algum tempo esta dificuldade se prolongou, causando mal-estar em toda
família. O apartamento ficou com maus fluidos, diziam alguns. Muito pesado,
diziam outros. Não moro lá de jeito nenhum, falavam os que conheciam a história
do mesmo.
Bem, mas voltando ao
apartamento, naqueles idos anos de
50, uma vez pronto para ser habitado,
mudaram-se para o imóvel, novinho em folha,
as três tias: a mais velha com mais de sessenta anos, também viúva, cujo
marido havia deixado esse mundo de forma duvidosa: ninguém ficou sabendo se fora assassinado
pela tripulação do navio, que conduzia com mão de ferro, ou havia se suicidado.
A primeira hipótese é a mais provável porque, segundo contam, ele era bem
carrasco com seus comandados. A outra tia, solteirona, trabalhava nos Correios
e Telégrafos, e tinha um velho namorado com quem ficava conversando no banco da
praça, de mãos dadas, como se tivesse quinze anos.
Finalmente a viúva do português com quem
viveu apenas nove meses.
Durante esses anos de vida
no 602, as tias viveram bem. De vez em quando pintava disputa afetiva entre as irmãs mais novas,
que queriam ser preferidas da mais velha, mas nada grave. Depois de certo
tempo, a tia solteirona teve um câncer no estômago e veio a falecer
prematuramente. A mais velha, amorosa e saudosa da irmã, despediu-se dessa vida
logo depois, com a mesma doença, ficando a mais nova sozinha no apartamento. Mas
não por muito tempo. Apareceu outra irmã solteirona, professora aposentada e
mais velha, que foi entrando e se aboletando no apartamento sob os protestos da
tia solitária. Essa viveu alguns anos com a irmã e faleceu aos 102 anos de
idade por causa de uma pneumonia.
Foi aí que eu entrei na
dança. Vim morar com a tia sobrevivente, que agora está com 104 anos. Durante
os treze anos em que estou vivendo no apartamento, nunca dormi no quarto grande
da casa onde moraram as tias que se foram...
Como acompanhei de perto a dor e agonia dessas pessoas ali entre as
quatro paredes daquele cômodo, as lembranças ficam muito vivas quando ali
penetro e não consigo dormir. Lembro-me da fala de uma, o andar da outra, os
gestos e até o olhar das três. Preferi então ampliar o quartinho da empregada e
morar ali. Até que chegou o verão 2015! O quartinho não tem ar refrigerado e o
ventilador de teto não é o suficiente para espantar o tórrido calor que se fez
sobre o Rio de Janeiro. Resisti o que podia! Fiz tudo para não dormir no quarto
em que viveram minhas antepassadas... Mas
lá tem ar refrigerado! Achei
melhor então fazer balanço das qualidades e virtudes de todas elas. Procurei
sentir a afetividade com que me envolviam desde que nasci. O carinho, o
cuidado, as gentilezas. A bondade que existia no coração de cada uma. Como eu e
meus irmãos fomos ajudados por aquelas criaturas! Bobagem pensar apenas no lado
do sofrimento; elas viveram bem à moda delas... Eram pessoas doces.
Na primeira noite foi
difícil, confesso. Mas a partir da segunda o ambiente foi ficando mais leve.
Afinal, ter passado para o outro lado da vida não quer dizer que deixaram de me
amar e quem sabe têm agora, sem seus corpos, outra forma de estar presente
amorosamente ou nunca mais vieram por ali, o que é mais provável. No mais o que
elas fariam entre quatro paredes com todo o espaço para voarem livres e soltas?
Ah! Calor do Rio de Janeiro
faz a gente superar até medo de fantasma!
Maria J. Fortuna - Nasceu em São Luís, Capital do Estado do Maranhão. Escolhi
Serviço Social como profissão. Com toda esta incursão no mundo das
artes, descobri que não podia viver longe desse cenário. A literatura
havia brotado cedo. Desde menina, sou fascinada pela palavra. Ingressei
na REBRA, onde recebi incentivo e divulgação do meu trabalho e resgatei
alguns textos que foram escritos no desenrolar da minha existência, aos
quais não dei muito valor na época em que foram produzidos. Recomecei a
escrever poesias, crônicas e livros infanto-juvenis. Publiquei cinco
obras infanto-juvenis, ao longo dos últimos anos: O menino do
velocípede, A incrível estória de amor de Mimo e Dedé , ilustrados pela
autora, ambos esgotados. O anjinho que queria ser gente, que está na 2ª
edição e O pardalzinho desconfiado, com ilustrações de Josias Marinho.
Os dois últimos pela Mazza Edições de Belo Horizonte. Em 2008, foi
lançada em Portugal outra obra de minha autoria por essa Editora:A
sementinha que não queria brotar, com ilustrações de Regina Miranda.
Este livro foi adotado pela Prefeitura de Belo Horizonte para as
crianças da rede escolar. Participei de duas Antologias a convite da
Editora Rosane Zanini: "A cidade em nós" - em três línguas (2010)," Um
dia em minha cidade"(2012). Ambas com crônica. Neste último ano,
participei da Antologia: "L´indiscutable talento des Écrivaines
Brésiliennes" pela REBRA, com poesia.
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