Pode a literatura ser a ciência mais pura? [Raquel Ribeiro e Mariana Soares]
A Revista 2 falou com cientistas e escritores para compreender a relação de uns e outros com a literatura e o conhecimento científico. No fundo, ambos estão à procura de uma tradução para o mundo.
O escritor Nuno Camarneiro também é físico. Para si, a literatura e a ciência partem ambas “de uma vontade de perceber” o mundo. “Nenhum campo do saber consegue conter toda a realidade”, diz. Tanto a física como a literatura trabalham com modelos: “A realidade não está numa lei física. A física trabalha com abstracções da realidade. O romance também é um modelo que ajuda a conceptualizar o real.” Na física estudamos a natureza das coisas — a literatura “é a ciência da natureza humana”.
Júlio Verne sonhou com a volta ao mundo, com a viagem à Lua, com a profundeza dos mares. Décadas depois, o avião levantou voo, o homem pisou o solo lunar, inventou-se o submarino. Talvez seja caso para dizer: o escritor sonhou; o cientista foi lá e fez, concretizou o sonho do poeta e a ciência avançou sempre por causa desse desejo (parafraseando M. Tavares).
António Câmara, engenheiro de formação, especialista em sistemas geográficos, fundador da YDreams, reconhece o legado de Verne e da literatura na ciência, mas revela sobretudo o fascínio por aquela figura do Liceu Pedro Nunes, que se sentava “lá atrás, na última fila do anfiteatro”, enquanto as aulas “eram dadas pelos seus assistentes”. “Sabíamos vagamente que era poeta e pensávamos que usava as aulas de ciências para escrever poesia”, conta Câmara, que foi aluno do poeta e cientista Rómulo de Carvalho/António Gedeão.
Gedeão e Verne parecem ter marcado uma geração de cientistas em Portugal. Ainda hoje a ficção científica “tem uma importância extraordinária”, porque são autores como Verne ou Isaac Asimov que “desenham o caminho do futuro”, diz Câmara. O autor norte-americano de ficção científica, Bruce Sterling, anunciou numa conferência nos anos 90 que “o futuro do computador é o lenço.” Na altura, diz Câmara, “pensámos: este homem está louco! Mas não: hoje sabemos o que esse lenço representa em termos de flexibilidade do ecrã, de portabilidade, de poder ser usado em qualquer lugar, que conjuga o lado útil e leve e é, ao mesmo tempo, uma janela para o mundo”, explica. Por isso, a ficção científica enquanto visão do futuro “continua a ter uma importância enorme para nós, cientistas”.
Câmara dá o exemplo da empresa Azorean, dos Açores, que está a desenvolver um drone aquático apoiado pela YDreams: “Isso vem dos sonhos do Verne — ele sonhou os submarinos e nós vamos criar os submarinos do futuro.” E hão-de ser pequenos, do tamanho de um telemóvel ou de uma câmara, sem tripulação, de preferência de baixo custo. Diz-se que Verne sonhou com o fundo do mar no edifício onde hoje está o Instituto de Espanhol, no Dafundo. “Ele tinha um barco e fez várias viagens a Lisboa. Crê-se que parte de Vinte Mil Léguas Submarinas tenha sido escrita aí. E isso é relevante para mim, porque eu ainda hoje vivo no Dafundo”, conta Câmara.
Uma ciência que não investiga os sentimentos serve para quê?
Gonçalo M. Tavares continua a indagar o método, os procedimentos, as grandes questões científicas. Mas parecem cada vez mais desligadas do que hoje a ciência comunica aos cidadãos. Talvez por isso, António Câmara explique que muitas das suas leituras passavam também por George Orwell, que não era cientista, mas que “nos apresentava uma visão distópica do futuro”, ou por Aldous Huxley e o seu Admirável Mundo Novo: “Aliás, toda a família Huxley vem de uma tradição fortíssima ligada à literatura e à ciência. O biólogo Julian Huxley, irmão de Aldous, era um cientista que escrevia maravilhosamente.” Foi quando fez o doutoramento nos EUA que António Câmara leu “artigos clássicos dos anos 1940, da matemática e do ambiente”, que eram “autênticas peças de literatura”, que demonstravam que os cientistas “tinham uma formação científica e humanística”. Isso perdeu-se: “Foi-se reduzindo a capacidade literária da escrita científica. Hoje, um artigo da Nature ou da Science é um artigo despido de adjectivos. Isso retira-lhe a emoção que tem de estar associada à ciência.”
Os cientistas mais bem sucedidos, hoje, são aqueles que “têm essa formação humanística e não são só os que têm uma formação técnica”. Essa diferença “abissal” demonstra-se em conferências e seminários, “na forma de expor o conhecimento”, e Câmara, que é professor na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, admite que isso se nota, por exemplo, nos alunos Erasmus que recebe de universidades como Cambridge, Oxford ou do Imperial College. “Os nossos alunos de engenharia não têm cultura literária, por isso a sua expressão narrativa é muito pobre. ”
O físico João Magueijo também é escritor. Professor no Imperial College, em Londres, queixa-se do mesmo: “Os meus alunos não sabem escrever.” Para Magueijo, escrever artigos científicos “também é fazer literatura” e confessa que seria talvez interessante que alunos de Física “fizessem cursos de escrita criativa”. Lê muito, sobretudo romance contemporâneo: Paul Auster, Hanif Kureishi, Salman Rushdie, Ismail Kadare. Lê em português, em italiano, em inglês, “por puro prazer”. E também escreve: “Dou-me muito melhor com a não-ficção. O mais próximo que estive da ficção foi quando traduzi para inglês um livro do Rui Cardoso Martins”, graceja. Publicou, sempre na Gradiva, Mais Rápido Que a Luz (2003), que resulta da sua tese de doutoramento sobre a velocidade da luz e em que desafia a Teoria da Relatividade de Einstein; O Grande Inquisidor (2011), sobre o físico nuclear Ettore Majorana, e, recentemente, Bifes Mal Passados, livro de viagens pelo Reino Unido (o qual a Revista 2 apresentou em pré-publicação na edição de 22 de Junho). Até certo ponto, reconhece, “todos estes livros são biográficos”.
Magueijo diz que “chegou à escrita por convite” e que, se “no início foi um desafio”, com o tempo impôs-se “um estilo pessoal que tem ressonâncias” com o seu lado científico: “Não era capaz de fazer ciência a tempo inteiro, tal como não creio que pudesse escrever a tempo inteiro.” Chega então a uma espécie de consenso que, conta, tem que ver com a sua “tendência humanística” e a forma como usa “tácticas de choque para comunicar ciência” aos seus pares: “Tenho tendência para arranjar metáforas para explicar as coisas. Se fizer algo que choque as pessoas e que não seja mainstream, crio um ruído de fundo.” Numa conferência que juntava “duas realidades que não se compreendem”, Gravidade Quântica e Cosmologia, Magueijo abriu a sua palestra com uma imagem que, diz, só um autor como Luiz Pacheco usaria: “Comecei por evocar a imagem de uma girafa a ter relações sexuais com um elefante. As pessoas ficaram chocadas e pensaram: este gajo é louco! Mas é uma maneira de passar a mensagem científica e eu vou à literatura buscar essas técnicas.”
A comunidade científica olha pelo centro do olho. Os grandes investigadores olham pelo canto do olho.
Ter visão nem sempre é suficiente para se ser um grande investigador. Às vezes, é preciso saber traduzir essa visão, a ideia em texto. Uma pessoa comum usa cerca de dois mil vocábulos, diz António Câmara – “uma pessoa culta usa oito mil”. Quanto mais o cientista “dominar a língua, os seus níveis, as regras e a expressão, maior será a sua capacidade de argumentação e retórica” que lhe permitirá criar, por exemplo, um modelo. Um problema matemático começa simplesmente pela descrição verbal, “o mais rica possível”, desse problema, explica Câmara: “Nos modelos matemáticos, as ligações entre peças de informação são feitas através de vocábulos. Os substantivos vão ser as variáveis, depois os verbos e as preposições que ligam esses substantivos. No fundo, vou mapear o texto num diagrama e criar ligações. Se eu estiver limitado a dois mil vocábulos, o meu modelo vai ser muito mais pobre e eu não vou conseguir traduzi-lo.”
Magueijo corrobora: “O
trabalho científico pode ser muito teórico e é preciso dar espaço à criatividade
para as ideias aparecerem.” Uma coisa é a ideia, outra, a teoria. Isto é: a
ideia é um sonho mas depois é preciso prová-la, testá-la, analisá-la,
“matemática, lógica e objectivamente”. “Há muita gente na comunidade científica
que se fica apenas pelas ideias e não as converte em teorias. São, por vezes,
pessoas com grande capacidade matemática que não sabem expor ideias”, explica o
físico. Magueijo é conhecido pela sua “metodologia” (em aspas, porque não
estamos a falar do método científico) pouco ortodoxa. Citando Gonçalo M.
Tavares: Esse é o perigo da superespecialização do cientista que parece estarmos a observar neste momento, lembra Gonçalo M. Tavares. “Qualquer cientista tem de parar a certa altura e perguntar: para que é que estou a fazer isto? Quais são as consequências? São perguntas de sistema, muito filosóficas”, diz o escritor. O problema é quando a ciência “se centra no como, no modo de fazer as coisas, e não no porquê”. Às vezes, esse “como” é tão complexo que o cientista “entra num sistema profundamente alienado — aliás, muita da história trágica do século XX é uma história em que, de certa maneira, a ciência foi utilizada, instrumentalizada, manipulada pela política”. Os cientistas estavam “obcecados pelo como” e “nunca perguntaram para quê e porquê”.
É aqui que a literatura é importante: “A literatura e as artes não sabem o como, mas a boa literatura tenta perceber o para quê e o porquê.” Se por um lado se pode pensar a ciência “enquanto progresso humano”, por outro, diz Patrícia Portela, escritora e encenadora, a ciência “também pode ser entendida enquanto história, narrativa, decisão” e, a par da literatura, ser “um espaço de reflexão sobre as coisas que ainda não sabemos: é essa relação de apetite pelo desconhecido que junta as duas áreas”.
Portela diz-se leiga mas fascinada pela ciência. Fala com à-vontade das últimas revelações sobre a Partícula de Deus ou sobre a Lei da Gravidade, temática no seu livro Wasteband (2014). Colecciona notícias bizarras, científicas e pseudocientíficas, como em O Banquete (2012). “Há um lado muito poético nalgumas descobertas científicas. As notícias d’O Banquete são resultado de anos e anos sempre a coleccionar. Não é tanto pelas descobertas científicas em si, mas pela forma como nos fascinamos e escrevemos sobre elas”, explica.
Num processo narrativo singular, Portela conta que há uns anos, “antes de se lançarem as primeiras sondas em Marte”, tinha-se descoberto que Marte tinha uma determinada qualidade que “permitiria, quiçá, a existência de vida”. Numa conversa de café em Lovaina (a encenadora vive na Bélgica), perguntou a um senhor qual era a sua profissão. Ele respondeu, apontando para o espaço: “Olho para ali para aquele planeta todos os dias. Trabalho no centro de pesquisa sobre Marte.” Portela confessa que “não resistiu” em perguntar-lhe se ele achava que haveria vida em Marte: “Se eu achasse que não havia, não olhava para ele todos os dias.” O homem disse-o com “uma simplicidade, como se me estivesse a dizer o óbvio: tens de decidir primeiro se faz sentido dedicares uma vida inteira” a uma partícula, a um micróbio, à descoberta da cura de uma doença: “Porque se achas que ela não existe, a tua vida não faz sentido.” Com o escritor também é assim: há um certo fascínio, um espanto. “O que me entusiasma é a ciência do espanto, a curiosidade humana, e não a visão utilitária da ciência, da quantificação, cada vez mais eficaz.”
O cientista perfeito é também jardineiro: acredita que a beleza é conhecimento.




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