Em
carta secreta, Mário de Andrade comenta com Manuel Bandeira boatos sobre sua
'tão falada' homossexualidade
'Está claro que eu nunca
falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto', diz o modernista no
documento
por Leonardo Cazes / Maurício
Meireles
Como previsto, a carta
secreta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, que foi mantida em sigilo por 40
anos pela Fundação Casa de Rui Barbosa, traz o modernista comentando com o as
fofocas que circulavam sobre sua 'tão falada' homossexualidade. Manuel Bandeira
chegou a publicar essa carta em seu livro com missivas trocadas com o amigo,
mas omitiu um trecho inteiro sobre o assunto.
O documento chegou à Casa de
Rui Barbosa em 1978, junto com o acervo de Manuel Bandeira. O material foi
doado por Maria de Lourdes Heitor de Souza, ex-companheira do poeta. Então
presidente da instituição, o advogado Plínio Doyle, amigo pessoal de Mario de
Andrade, decidiu lacrar a carta por se tratar de um tema íntimo. A carta foi
revelado nesta quinta-feira, depois de ordem da Controladoria Geral da União.
Leia o trecho revelado, que no documento original datilografado está marcado
com lápis vermelho:
"Está claro que eu
nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto. Mas em que podia
ajuntar em grandeza ou milhoria para nós ambos, para você, ou para mim,
comentarmos e eu elucidar você sobre minha tão falada (pelos outros)
homossexualidade. Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar um muito de exagero
que há nessas contínuas conversas sociais não adiantava nada pra você que não é
indivíduo de intrigas sociais. Pra você me defender dos outros, não adiantava
nada pra mim, porque em toda a vida tem duas vidas, a social e a particular, na
particular isso só me interessa a mim e na social você não conseguia evitar a
socialisão absolutamente desprezível de uma verdade inicial. Quanto a mim
pessoalmente, num caso tão decisivo para a minha vida particular como isso é,
creio que você está seguro que um indivíduo estudioso e observador como eu,
ha-de estar bem inteirado do assunto, ha-de tê-lo bem catalogado e
especificado. Ha-de ter tudo normalisado em si, si é que posso me servir de
"normalisar" neste caso. Tanto mais Manu, que o ridículo dos
socializadores da minha vida particular é enorme. Note as incongruências e
contradições em que caem: o caso de "Maria" não é típico. Me dão
todos os vícios que por ignorância ou interesse de intriga são por eles considerados
ridículos e no entanto assim que fiz de uma realidade penosa a
"Maria", não teve nenhum que caçoasse falando que aquilo era
idealização para desencaminhar os que me acreditam nem sei o quê, mas todos
falaram que era fulana de tal.
Mas si agora toco neste
assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta
que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua
(veja como tenho minha vida mais regulada que máquina de precisão) e se saio
com alguém é porque esse alguém me convida. Si toco no assunto, é porque se
poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades platônicas, só
minhas. Ah, Manu, disso só eu mesmo posso falar. E me deixe que ao menos para
você, com quem apesar das delicadezas da nossa amizade, sou de uma sinceridade
absoluta, me deixe afirmar que não tenho nenhum sequestro não. Os sequestros
num caso como este, onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha
de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis.
Eis aí os pensamentos
jogados no papel sem conclusão nem consequência. Faça deles o que quiser."
Em um dos trechos publicados
por Manuel Bandeira, no qual um nome próprio é substituído por X., o nome
omitido foi o de Oswald de Andrade. A ruptura da amizade dos dois é um dos
casos famosos na história do modernismo. Leia um trecho da carta publicada com
o Manuel, sem o nome omitido:
"E o mais bonito, Manu,
é que o Oswald não é meu amigo, fique sabendo. Eu é que sou amigo dele. Não
venha me falar tudo o que você já me tem falado sobre ele. Já sei de tudo e
aceito muito. Porém, conhecendo cotidianamente o Oswald, posso muito, mas muito
particularmente afirmar pra você que ele não tem nobreza moral. E o que é mais
triste é que ele mesmo já põe reparo nisso e está se utilizando disso pra
viver. Me desculpe falar estas coisas pra você e creio que você me conhece de
suficiente amizade pra saber que eu era incapaz de estar criando uma intriga ou
apenas uma prevenção de você contra ele."
O biógrafo do modernista,
Eduardo Jardim, achou a carta bonita e esclarece que Mário usava a palavra
"sequestro" como uma tradução selvagem do "recalque"
freudiano. Em sua biografia do modernista, Jardim mostra que a sexualidade do
escritor era mais complexa do que rótulos como heterossexualidade ou
homossexualidade. E agora torce que, com a revelação do documento, a obsessão
de alguns pela sexualidade de Mário fique resolvida.
— Não só achei a carta
bonita, como acho legal o fato de que esse negócio tenha se resolvido. (A abertura
da carta) libera a possibilidade de falarmos sobre outras coisas. Antes ficava
aquela coisa insistente, de jornalista chato pegando no nosso pé! — ri Jardim.
— O Mário é múltiplo, é 300, é incrível. Ele é um super crítico da hipocrisia.
Ele escreveu "Amar, verbo intransitivo", nos anos 1920, para
questionar o moralismo babaca. Os contos são muito incríveis do ponto de vista
de denunciar o falso moralismo. Vamos botar Mário de Andrade para cima agora.
LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO
A abertura da carta secreta
se deve a um pedido de pela lei de acesso à informação do jornalista Marcelo
Bortoloti, da revista "Época", feito em fevereiro. Como a Fundação
Casa de Rui Barbosa (FCRB) se recusava a garantir acesso à carta, o pedido
chegou à Controladoria Geral da União, que, no dia 28 de maio, determinou que o
documento fosse aberto a pesquisadores. A FCRB tentou recorrer, mas, no dia 9
de junho, a CGU reafirmou sua decisão.
‘Não adiantava nada pra mim
porque em toda vida tem duas vidas, a social e a particular, na particular isso
só interessa a mim’- Mário de Andrade
Em carta a Manuel Bandeira
Numa movimentação atípica, a
determinação da CGU sobre o recurso do jornalista vazou para a imprensa no
último sábado. Mesmo assim, como O GLOBO noticiou na segunda-feira, a FCRB
resistia em garantir a consulta ao documento. Depois voltou atrás. Chegou a
circular a notícia de que o próprio ministro da Cultura, Juca Ferreira, havia
pressionado a instituição — informação desmentida pelo ministério. No mesmo
dia, O GLOBO havia solicitado à assessoria de imprensa do ministro uma posição
de Juca sobre o caso. Assessoria informou que ligou para a Casa de Rui a fim de
se informar sobre o assunto e poder levar a demanda a Juca. Pouco depois dessa
ligação, a instituição mudou sua posição. A assessoria, porém, esclarece que
não foi "portadora de nenhuma pressão" do ministro — apenas entrou em
contato para ter mais detalhes do caso.
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Nenhum comentário
Postar um comentário