RAZÃO
E SENSIBILIDADE
Um
homem que não tem nada para fazer com o seu tempo não tem consciência de se
intrometer no dos outros, diz Marianne, uma das duas
protagonistas de Razão e Sensibilidade,
um dos romances “menores” de Jane Austen. Essa afirmação mostra-se como um dos
momentos humorísticos mais expressivos da escritora inglesa, pois quem o emite
passa cerca de 50% da narrativa doente ou chorando – que, grosso modo, é a
mesma coisa. E isso significa que ela se intromete no tempo dos outros, que
precisam deixar de lado as próprias atividades para cuidar de suas (dela)
necessidades. A maior vítima (ou beneficiária) dessa situação é Elinor, que –
na medida do possível – acompanha o sofrimento da irmã.
Tudo começou quando, um
pouco antes de morrer, Henry Dashwood pediu ao seu primogênito, John, que
protegesse a madrasta e as três irmãs (Elinor, Marianne e Margareth), frutos de
seu segundo casamento. Na primeira oportunidade, Fanny, esposa de John, tomou
posse de Norland Park, a mansão familiar, em Sussex, e promoveu a lenta e gradual
expulsão das quatro mulheres – que, poucos meses depois, foram viver em
Devonshire, em um chalé situado em Barton Park, na propriedade de Sir John
Middleton, primo da viúva Dashwood.
Com essa base narrativa,
Jane Austen repete o tema das donzelas desprotegidas e falidas que procuram –
urgentemente – por um casamento (ver Orgulho
e Preconceito ou Mansfield Park).
O objetivo das irmãs mais velhas da família Dashwood, Elinor e Marianne,
fracassa em razão de alguns enganos e várias escolhas desastrosas. Elinor se
sente atraída por Edward Ferrars. O mesmo ocorre com Marianne, que imagina
estar noiva de Willoughby. Os dois romances precisam passar por provações
significativas.
Em primeiro lugar, o
romantismo de Marianne (É muito
impaciente, muito intensa em tudo o que faz. Às vezes fala muito e com muita
animação, mas raramente é alegre) esbarra no pragmatismo de Elinor – que
detesta situações que não controla. Basta lembrar a cena em que conversa com a
mãe sobre o namoro da irmã:
– Não quero prova do amor deles – disse Elinor –, e sim do noivado
entre os dois.
– Estou perfeitamente satisfeita com ambos.
– No entanto, nenhuma sílaba foi dita à senhora sobre este assunto,
por nenhum deles.
– Não quis sílabas onde ações falaram com tanta clareza.
O segundo obstáculo surge
exatamente desse tipo de desentendimento. Depois de muitas situações nebulosas,
e uma temporada interminável em Londres, quando acompanham a Sra. Jennings, as
duas irmãs descobrem que os prováveis parceiros estão comprometidos com outras
mulheres. Enquanto Elinor se protege com o manto estoico (ou seja, prefere
lamber silenciosamente as próprias feridas), Marianne entra em estado de
desidratação – tamanha é a quantidade de lágrimas que verte diariamente.
Contrário aos romances de
ação, Razão e Sensibilidade se
caracteriza pelo relato de poucos fatos significativos. A grande maioria dos
acontecimentos se restringe ao terreno da imobilidade. Parece que as irmãs
protagonistas estão a esperar por uma solução divina – que não acontece. A
única ação efetiva, nas primeiras 150 páginas, se concentra nas cartas que
Marianne envia para Willoughby. O resto é conversa, especulação, boato e
fofoca.
Quando esse impasse avança
na direção de algum esclarecimento, o leitor percebe que não foi possível
alcançar algo mais substantivo. Infelizmente, a impressão não desaparece com o
desenvolvimento narrativo. Willoughby se revela um cafajeste, mas disso ninguém
tinha dúvidas. Edward Ferrars, protótipo do bom moço, perde a progenitura para
poder honrar um compromisso assumido em uma ocasião de ingenuidade – fato que
confirma o julgamento que ele faz de si mesmo: (...) meu próprio refinamento, e o de meus amigos, fez de mim o que sou, um
ser desocupado e inútil.
Nesse interim, o Coronel
Brandon entra em cena, mas a sua aproximação das irmãs tem a utilidade de uma
sombra, ou de algo incorpóreo, e que não altera em quase nada o fluxo narrativo
– como personagem ele se parece com algum elemento secundário do cenário,
talvez um vaso em cima de uma mesa, próximo da janela.
Quando o leitor, preocupado
com o restante da narrativa, imagina que o fundo do poço está próximo de ser
alcançado, e não há mais como prosseguir, surge uma solução milagrosa. Por um
desses mecanismos que somente a criatividade literária ou a rivalidade fraterna
explica, Robert Ferrars, que se tornou o herdeiro da família depois que seu
irmão, Edward, foi deserdado, resolve cortejar Lucy Steele – noiva do irmão.
Esse curto-circuito social, confirmando a tese de Elinor de que a delícia de uma ação nem sempre demonstra
a sua conveniência, termina em casamento. E, estranhamente, em liberdade
para Edward – que, ato contínuo, pede a mão de Elinor. Como não poderia ser
diferente, Marianne, que nascera para um
destino extraordinário, encontra nos braços do Coronel Brandon a
felicidade.
Há diversos motivos para ler
Razão e Sensibilidade. Muitos deles
estão encobertos pelo ritmo lento da narrativa. A crítica social, por exemplo,
se projeta com bastante intensidade. A honra e o comportamento adequado em
determinadas ocasiões são constantemente reiterados pelo narrador como valores
sociais civilizatórios. Enquanto personagens como Willoughby e Robert Ferrars
são vistos como indivíduos reprováveis eticamente, o contraponto está
exatamente naqueles que se mostram retraídos em todos os momentos cruciais da
narrativa, Edward Ferrars e Coronel Brandon. Nas entrelinhas talvez esteja
escrito que a discrição e o bom-senso são fundamentais para elevar o caráter.
Entre as mulheres o destaque está na Sra. Jennings, que não possui travas na
língua, se mete na vida de todo mundo e, de certa forma, adota as irmãs
Dashwood como se fossem suas filhas. Ela é a personagem mais divertida do
romance (embora diminua em intensidade na parte final do romance). Seu
contraponto é Fanny, esposa de John Dashwood, e irmã de Robert e Edward
Ferrars. Esnobe, invejosa e defensora de casamentos entre os membros da “classe
alta”, produz uma das melhores cenas do livro quanto tem um ataque histérico –
no momento em descobre que Lucy Steele está noiva (em segredo) de Edward. Por
fim, o casal Sir John Middleton e Charlotte não passa em branco, inclusive
porque recebem uma definição perspicaz: Apesar
de terem temperamentos e comportamentos diferentes, pareciam-se muito um com o
outro na total falta de talento e de gosto.
Razão
e Sensibilidade não é o melhor romance de Jane Austen. Mas,
seja como documento de época, seja como entretenimento, proporciona uma leitura
agradável e divertida.
Raul
J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
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