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“TRANSES”, DE ÀIYÉ

Àiyé (imagem: Hannah Carvalho)

“Transes”, de Àiyé
Por Jorge LZ*

Os diversos caminhos guiados por santos e synths
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“Cara, eu cheguei à conclusão de que este disco é uma encruzilhada mesmo... É um altar de todos os santos e uma mistura do Brasil com o Egito, queridas...” Assim Larissa Conforto, o nome por trás do projeto Àiyé, abre Transes (2023), seu segundo álbum, descrevendo o que ouviremos em seguida. Por mais que possa soar como uma brincadeira, essa definição dá o tom exato do conceito do álbum e serve de bússola para a viagem em seu universo.

Nascida no Rio de Janeiro, cantora, compositora, instrumentista e produtora, Conforto começou a chamar atenção como integrante da banda Ventre. Exímia baterista, tocou com nomes importantes, como Laure Briard, Marcelo Yuka e Paulinho Moska, além de atuar como produtora artística em álbuns de Alceu Valença, Chico Buarque e Gilberto Gil. Como Àiyé, excursionou pelo Brasil e pela Europa e lançou, em 2020, Gratitrevas, seu primeiro álbum, considerado um dos melhores daquele ano por vários veículos de comunicação, entrando, inclusive, na lista dos 50 melhores discos feita pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Transes, que saiu neste mês pelo selo Balaclava Records, tem em seu centro, como diz Conforto na intro, a encruzilhada em um sentido amplo – além de ponto de encontro, ela é ponto de partida. O encontro se dá pelo conjunto de influências, sejam elas de ordem musical ou sensorial; já a partida está caracterizada pela ressignificação dessas influências, que são transformadas em algo consistente e que traz uma assinatura forte.

Na contramão do pop atual – que obedece às demandas do “mercado”, buscando entregar o “mais do mesmo” que a indústria do streaming determinou ser o que o povo quer ouvir (o que costumo chamar de hype) –, em Transes, Conforto não cai na armadilha e é sagaz em utilizar os elementos do pop para criar algo que, mesmo atendendo aos anseios do hype, certamente sobreviverá ao “som do momento” e se perpetuará, uma vez que possui identidade própria.

Traçando um paralelo com essa forma de atuar, penso em como Björk lida com sua criação. Diferentemente de diversos nomes que colocaram seus trabalhos a serviço da eletrônica para atingir o que o mercado exigia, a multiartista islandesa inverteu a dinâmica e fez com que a eletrônica estivesse a serviço de suas ideias. Sendo assim, não é por acaso que muitos dos que estavam na crista da onda da eletrônica afundaram, enquanto Björk segue navegando, de vento em popa, com muita criatividade e apresentando surpresas a cada novo trabalho lançado.

Voltando ao Transes e ao princípio da encruzilhada, as 13 canções do álbum são assinadas por Conforto, sendo uma delas “Oração”, em parceria com Diego Poloni e Sús. Em direção ao ponto de confluência e também ponto de partida, seguem o samba-reggae de “Onda”, segunda faixa do álbum, o fraseado funk de “Oxumaré (que meus venenos sejam mel)”, o reggaeton de “Diablo XV”, o samba de “Saci” e o ijexá de “Cores de Oxum”, por exemplo.

Porém, há caminhos dentro dos caminhos, já que as composições não se fecham, necessariamente, em apenas uma vertente musical, ampliando as possibilidades rítmicas e harmônicas em um ambiente que consegue ser minimalista e exuberante, embalado por uma sonoridade apurada, em que há uma interação precisa entre o orgânico e o eletrônico, entre beats e tambores e entre ritmo e harmonia. Essa sinergia é fruto da produção assinada por Poloni e por Conforto, que assume toda a instrumentação, dobra vozes em coros, opera synths que funcionam como cordas e sopros, e conta com a participação especial e pontual de 4RT, do grupo Atabloco – atabaques nas faixas “Oxumaré (que meus venenos sejam mel)” e “Xangô” –, Alejandra Luciani, do duo Carabobina – vocal na faixa “Flui” –, Fabio Sá – baixo acústico na faixa “Xangô” –, Ronaldo Pereira – saxofone na faixa “Bad omen” – e Sús – vocal na faixa “Oração”.

Transes, Àiyé (imagem: divulgação)

O desenvolvimento do conceito de Transes foi bastante cuidadoso, e não há sequer uma única ponta solta, desde o lançamento do primeiro single, “Exu (tenho fome)” (se levarmos em conta que esse orixá é justamente aquele que abre os caminhos), até a capa, em estética de computador, na qual várias janelas se abrem e formam uma colagem com uma profusão de fotos, pinturas, desenhos, objetos – alguns funcionando como easter eggs remetendo à internet, o lugar “inexistente”, onde é possível encontrar de tudo.

Os muitos caminhos que chegam e partem do álbum demonstram a maturidade de Larissa Conforto como instrumentista, arranjadora e produtora, além de colocá-la em destaque, com seu trabalho personalíssimo, em uma indústria que parece buscar a uniformidade da arte.



*Jorge LZCarioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto.




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