Como a tradição oral vem sendo mais valorizada no Brasil
Nos últimos anos, prêmios, tombamentos e estudos acadêmicos reconhecem a importância dos saberes populares não escritos; Biblioteca Nacional incluiu categoria na edição deste ano de seu concurso tradicional.
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No município de Divina Pastora, interior do estado de Sergipe, centenas de mulheres se dedicam a um trabalho especial cujo conhecimento é passado de geração para geração desde o final do século 18. Trata-se da confecção das rendas irlandesas, um tipo de bordado específico, levado da Europa pela aristocracia imigrante 250 anos atrás e aprendido pelas suas mucamas.
Em 2009, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou a técnica, incluindo essa tradição oral no chamado de Livro Registro dos Saberes. Quatro meses atrás, o órgão publicou o Plano de Salvaguarda do Modo de Fazer Renda Irlandesa, um material que não só registra as especificidades da técnica como apresenta estratégias para não deixar esse conhecimento desaparecer.
Encarar a tradição oral como fundamental para a diversidade cultural do país é uma postura que tem sido cada vez mais incorporada pela intelectualidade nacional. “Alçar à superioridade a cultura letrada somente porque tem o domínio da escrita é um grande equívoco”, pontua o músico Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da Universidade de São Paulo e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo.
Fundada em 2014, a cátedra tem nos saberes orais um de seus campos de estudo. "A perspectiva da tradição oral já é revista pela antropologia e pela sociologia, porque a preponderância do letrado tem uma perspectiva evolucionistas, mas se pensarmos na preocupação tão grande que vivemos atualmente, qual é a cultura superior do ponto de preservação do meio ambiente? ”, exemplifica. “São as culturas dos povos originários, pois eles sempre viveram em sintonia com a natureza.”
Ikeda observa que esse movimento de valorização de tais saberes vem crescendo no Brasil há duas décadas, “a partir do primeiro governo Lula , com Gilberto Gil no cargo de ministro da Cultura”.
Diversidade brasileira
No meio acadêmico, exemplos da inserção de tais conhecimentos não faltam. No câmpus de Assis da Universidade Estadual Paulista, o professor Francisco Cláudio Alves Marques é o coordenador do grupo de pesquisa Cultura Popular e Tradição Oral: Vertentes. Ele destaca que, em um país de tanta diversidade cultural como o Brasil, o leque de expressões culturais transmitidas por via oral é praticamente incontável.
"Diversas dicções brasileiras expressam a forte oralidade colonial na figura de cantadores, vaqueiros, lavadeiras, vendedores ambulantes e de feiras, dos reclames e pregões gritados na praça, dos cantos e lendas indígenas contadas e recontadas, dos akpalôs e arokins africanos no interior das fazendas brasileiros, itinerantes contadores de histórias à maneira dos griões”, enumera ele.
Marques lamenta, contudo, o desaparecimento de inúmeras oralidades que não foram registradas ao longo do tempo, de lendas e canções indígenas a cantigas de vaqueiros negros escravizados, “que ficaram ecoando no esquecimento dos sertões brasileiros”.
É para evitar que mais saberes do tipo se percam que os instrumentos são usados para registrá-los. Da tradicional “recolha”, ou seja, a prática de um pesquisador transcrever aquele conhecimento específico a proteções institucionais a exemplo das realizadas por órgãos como o Iphan.
Mestra pela Universidade de Brasília (UnB), a historiadora Daniela Miller Lopes, professora do Colégio Presbiteriano Mackenzie, vê na acessibilidade dos equipamentos de gravação de hoje uma importante aliada nesse processo. “Considerando a diversidade tecnológica da atualidade, há diversos recursos para a preservação dessas fontes”, comenta ela.
O papel das instituições
Lopes acrescenta que "a valorização e a divulgação desses saberes, pelas instituições competentes" também uma forma eficiente de não deixar tais tradições caírem no ostracismo. "A cultura é um elemento vivo, que se sustenta e que se transforma a partir dos infinitos aspectos da realidade política e socioeconômica coletiva”, afirma.
Nesse aspecto, a Biblioteca Nacional decidiu entrar no jogo. Em sua cobiçada premiação literária, concedida gratuitamente desde 1994, uma entidade incluída a partir deste ano uma categoria destinada a reconhecer a importância dos cantos ancestrais e narrativas da oralidade recolhidas entre povos originários, ribeirinhos e de matrizes culturais.
O prêmio é chamado de Akuli, em homenagem às jovens sabedorias da tribo Arekuná que teria sido o que narrou a história de Macunaíma a um pesquisador alemão, o etnólogo Theodor Koch-Gunberg (1872-1924). Mais tarde, esse mito seria protegido por Mário de Andrade (1893-1945), que faria dele uma das mais importantes obras literárias brasileiras do século XX.
Presidente da Fundação Biblioteca Nacional, o poeta Marco Lucchesi conta que a ideia do prêmio Akuli partiu dele próprio, “depois de uma experiência particular visitando aldeias indígenas e comunidades quilombolas em algumas partes do país”.
“A tradição oral traz sempre uma perspectiva literária”, defende Lucchesi, que entende que “compreender o mundo não se limita ao livro [à cultura letrada], mas que o livro do mundo precisa ser absorvido com uma grande capacidade de olhar”. “A conquista gráfica não é a única conquista possível”, destaca.
Ele ressalta que a Biblioteca Nacional tem como uma de suas missões guardar os conhecimentos da nação e, portanto, os saberes transmitidos de forma oral não podem ser negligenciados.
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Fonte: DW
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