Deise Assumpção - [Poeta Brasileira]
cordão
umbilical
enterrado
como mandam
avós e bisavós
no fundo
do quintal
unhas
de todas
as idades
e dentes
primeiros
e mesmo
segundos
sepultos
sem rito
em latas
de lixo
e amígdalas
e útero
e placenta
e mioma
acondicionados
excrementos
cirúrgicos
sangue
lágrimas
risos
nos esgotos
do amor
e do ódio
neurônios
a pele
os olhos
secando
aderindo
aos ossos
os ossos
descendo
no rito
da cova
consumam
inventário
e herança
o sêmen
adia
a lápide
no corpo
do filho
e a alma
insepulta
deposita
uma flor
e deixa
o campo
sagrado
PASSAGEM SECRETA
só
entre
o tudo que já perdi
e o jamais conquistado
de repente
o bater à porta
que não há
nem mãos que batam
os ouvidos
insistem
e fazem
a neblina
o vulto
e lenta
me surjo:
porta
quem bate
e chave
POEMA SEM FACE
Quando eu nasci,
o anjo ia de férias,
o bom pro inferno,
o torto pro céu,
no meio do caminho
(tinha uma pedra)
trombaram as asas,
e a mim apenas chegaram
as palavras misturadas
de augúrios atropelados.
Quando eu nasci,
no fundo do meu quintal
representava-se A Divina Comédia,
Virgílio guiava Dante,
Dante guiava os atores,
e eu me perdi entre os três atos,
sobrou-me só o cheiro da poesia,
que não chega a compor o poeta.
Quando eu nasci,
Riobaldo se exorcizava
confabulando com Rosa,
e uns pensam que sou do lar,
outros me vêem Nhorinhá,
do que dele se saía
peguei foi Diadorim,
a diabrura do amor
que se quer todo acabado,
e essa dor é que vige
dentro sempre de mim.
Quando eu nasci,
Macunaíma já Ursa Maior
só brincava com cunhã-estrela,
e com medo de bomba atômica,
entre o Uraricoera e São Paulo,
cacei meu muiraquitã,
nunca que pude encontrá-lo,
e história tem mais não.
Quando eu nasci,
Ofélia já louca era morta,
e à beira da minha cova,
na angústia entre ser e não ser,
refugiei-me a compor versos,
que só me trouxeram em eco
anêmicos arremedos de Hamlet.
Quando eu nasci,
Bandeira já muitas vezes
dissera o trinta-e-três,
já fugira pra Pasárgada,
mas deixei seu livro aberto,
que também em versos choro
de desalento... de desencanto...
Quando eu nasci,
da velha vida severina,
que grassa por toda parte,
por graça fui desviada,
pra pagar até o fim
com fome outra severina:
a de querer ser poeta.
A BONECA
de papelão
podia brincar à vontade
não se quebrava
melhor que de porcelana
(dizia o pai)
grande
punha-lhe fraldas
cueiros e pagãozinhos
faixa do peito aos pés
protegendo a espinha
(como a mãe fazia
no irmãozinho recém-nascido)
dia santo
roupa nova
procissão
veio chuva, das mais fortes
telhado nu
dava goteiras
uma delas foi mirá-la
certeira aos pés da cama
(sobre o cobertorzinho
dobrado em borboleta)
bochecha ulcerada
indelével goteira
em minhas relíquias
(mortas e vivas)
macera-me o riso
(não me esfacelo)
REMISSÃO DO TEMPO
a Bruno, meu neto
...um menino nos nasceu,
um filho nos foi dado...
pele de orvalho
riso de éden
olhos de espanto
balbucio criando o mundo
primícia de imemoriais clãs
cruzados:
perdão
(de adultérios e amores frustrados,
enlaces forjados,
desavenças e dívidas,
abortos e holocaustos,
catástrofes)
sagração
de núpcias
(as do primeiro olhar,
as conquistadas,
as desde sempre)
cegou
o pêndulo da casa antiga
atrai-me
olhos, mãos e beijo
(eu, já não-seios,
apenas colo)
para antes de meu tempo
de sugar
A ÚLTIMA AULA
(a Ricardo Rizek, in memoriam)
sob o Cristo
crucificado
entre quatro velas
corpo inerte
eterniza
o gesto
(mão longa emerge
de longo braço
quedam-se harmônicos
na sempre procura
de um jeito
no espaço
no tempo
:ou além)
rosto
isento de expressão
paz
do pleno desejo
do nada desejar
crava indeléveis
todas as frases
agora nunca mais
silêncio de templo
em procissão
estaca na cova
não se arreda
ante a resposta
encarnada
no mestre
à espera
tânatos
eclode
eros
apagou-se o cigarro
apenas
BRUXA-MADRINHA
toma-me pelos olhos
fibras todas
(corpóreas e incorpóreas)
leva-as ao píncaro:
na sarjeta e calçada
restos de fast-food
garrafa quebrada
preservativo escorrendo esperma
seringas secas
na florzinha ordinária
da fresta do cimento
duas borboletas gêmeas
em cio espelhado
por um triz
o par de sapatos
sobraçando a bíblia
não as esmaga
sem se dar conta
do desastre ou milagre
é manhã
domingo de páscoa:
em turno dobrado
recolher o êxtase
em palavras que ferem
encarcerar a bruxa
no poema:
Deise Assumpção
Todos os direitos autorais reservados a autora.
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