Abilio Pacheco - [Poeta Brasileiro]
Se a minha palavra é a minha busca
de uma vida inteira, em todo mundo
e ela dorme encantada à sombra
de um livro raro, quiçá
encontrá-la-ei num alfarrábio,
num sebo, numa biblioteca pública...
Quem sabe minha resposta ainda
esteja no prelo.
mosaico primevo 15 abilio pacheco
Escritura
(A Eliton Moreira e Ademir Braz)
Tecer versos é, por força, fazer sulcos em penedos,
Singrar as pedras todas do mar de si ao avesso,
Derramar suores em gotas no fero vigor do remo.
É ferir, à quilha da fragata, as artérias espumosas
Das altas internas vagas. É navegar por entre as rochas
E extrair exangues lascas — vergões por dentro e por fora.
É talhar a cerrados pulsos as pedras finas, mas duras.
E lapidar relevos pulcros em fendas pouco profundas.
É um árduo trabalho infruto, que só lega palmas sujas.
Mas é preciso fazê-lo! Alguém deve abrir as ostras
Abismadas em seu peito para juntá-las a outras
Iguais na casca e no meio, mesmo que estejam ocas.
Por fim: crer que vale a pena mineralizar as lavras
Como fulcros ao poema e inertes todas deixá-las
Inativas pelas fendas — palavras amortalhadas.
Para que tu, só tu possas sugar o cerne dos versos
Acumulados em poças pelos teus olhares tétricos
Que desmineram as horas e se desmentem eternos.
(In: Pacheco, Abilio. Mosaico Primevo. Belém: Ed. do autor. 2008.
pág. 16.)
Tessitura Noturna
(A João Cabral de Melo Neto)
Um latido apenas
não protege a rua
ele precisará sempre
que os cães o apanhem
e o lancem a outros cães
e a outros latidos
tal que somados todos
(latidos e cães) na noite
formem (no arcabouço
da matilha)
uma redoma protetora
em torno da rua.
(In: Pacheco, Abilio. Mosaico Primevo. Belém: Ed. do autor. 2008.
pág. 18.)
(Retrato II)
(A Cecília Meireles)
Eu também não tinha este rosto
assim tenso, assim denso, assim calvo,
nem olheiras e rugas
nem cabelos alvos.
Eu não tinha estes olhos de agora
tão rubros, tão turvos, tão vagos,
nem esta mão incerta,
nem dedos fracos.
Mal venho notando esta mudança
que lenta, constante e suave
do espelho vem desbotando
a minha face.
(In: Pacheco, Abilio. Mosaico Primevo. Belém: Ed. do autor. 2008.
pág. 23.)
Memórias de Março
(A Paulo Cardoso)
Quando amanheço... leito manso e lento
Nesta manhã sob este sol silente
A cidade desperta calmamente
Ao meu olhar atônito e em tormento.
Uma canoa tangida pelo vento
Com as lembranças da última enchente
Em mim desliza e a cidade sente,
À margem, nos degraus, um leve alento.
Mas a tristeza morre neste instante
Quando, no Pontal, o Itacaiúnas
Vem, farto de canoas, desaguar...
E sou, portanto, este olhar brilhante
Cheio de lembranças, de botos, de buiúnas...
Que corre lento assim de encontro ao mar...
(In: Pacheco, Abilio. Mosaico Primevo. Belém: Ed. do autor. 2008.
pág. 30.)
Revisita à Casa Bipaterna
(Aos meus pais-avós Ezequiel e D. Nenê)
A mesma rua ainda observa imóvel porta,
janela e paredes da casa,
onde moram os nossos velhos, pai e mãe,
onde as aranhas pacientes esperam, à teia urdida intacta,
pelos insetos que tardam a vir,
onde pandora parece nunca ter aberto sua caixinha,
onde, porém, o relógio de hora em hora
nos lembra que tempo passa,
onde nós moramos sempre meninos
a brincar de enterrar tesouro,
fazer mapas, armar arapucas e pegar pombos,
onde à tarde ouvimos as histórias
que nosso velho sargento ainda conta,
onde há galinhas, marrecos, patos, perus,
capotes, porcos, cães, gatos
e uma garça de asa quebrada,
onde há uma laranjeira, uma mangueira, um jenipapeiro,
uma só saudade dentro de dois corações
e uma solidão abissal, que só eles conhecem.
(In: Pacheco, Abilio. Mosaico Primevo. Belém: Ed. do autor. 2008.
pág. 33.)
Inteligência Artificial
(ou Pinóquio pós-moderno)
Minha fada cor de céu,
Por mil pares de anos
Repito-te o mesmo pedido:
Faze comigo o que fizeste
com o filho de Gepeto.
Mas, acima de nossas cabeças
Toda nova era glacial passou
E com ela os filhos de Japeto.
Por mil pares de anos te peço...
Para que me transformes no que sempre fui,
Sem que nunca tenha sido de verdade.
(In: Pacheco, Abilio. Mosaico Primevo. Belém: Ed. do autor. 2008.
pág. 34.)
A demanda do Pássaro Azul
Pela floresta de grutas e rochedos,
noite a dentro, vida a fora, ambas inteiras,
comigo meus cães, meus gatos, meus medos e desejos
e do candeeiro, a luz, em corpo esguio de mulher.
Onde o pássaro azul?
No cemitério? No vale? Nalgum arvoredo?
A coruja sábia... silente.
Os mortos sonsos... sabentes.
O pássaro em canto algum da floresta,
ou da noite, ou da vida.
Sequer uma dica, sequer uma pista.
E durante a noite toda, a busca vã.
Mas, pela manhã, bem à vista
no lugar de sempre – engaiolado
e tímido, o pássaro – em casa.
(In: Pacheco, Abilio. Mosaico Primevo. Belém: Ed. do autor. 2008.
pág. 35.)
Luzes da Cidade
(A Charles Chaplin)
Deambulo em trapos pelas ruas...
E vejo você, serena e cega, alva e bela,
com uma cesta plena de flores claras.
Súbito amo-te! como uma criança a outra.
Simples como a rosa branca
que recebo e ponho na lapela.
Faço de tudo para que
— mesmo vendo-me trapalhão —
você contemple as luzes da cidade.
(In: Pacheco, Abilio. Mosaico Primevo. Belém: Ed. do autor. 2008.
pág. 49.)
Elegia da Noite
Entre penumbras e sombras
sobras e restos de cores
de luzes ausentes...
abertas asas de ave em
secreto luar de estrelas
: vives!
Entre orvalhos de aurora
cantares de galos e galos
em matinais cores...
claros horizontes abertos
estrelas falecidas
(In: morres!
In: Pacheco, Abilio. Mosaico Primevo. Belém: Ed. do autor. 2008.)
Abilio Pacheco
Todos os direitos autorais reservados ao autor.
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