As noites em que se machuca Daniela denomina "noites cruas". Não sabe
bem de onde vem o termo. Às vezes, chama "noites pontiagudas".
Depende de como sangra. Ontem, por exemplo, uma excelente noite crua. Calor
insuportável na rua e Daniela nua, ajoelhada num canto, joelhos abraçados,
pingando.
A
princípio, suor.
Um bom
argumento para abrir a janela. Mas, ao invés do vento, o bafo seco da cidade.
Não chove há anos. As fissuras na pele de Daniela são testemunhas. Fissuras que
mais parecem abismos. Vez ou outra, ela se equilibra na beirada deles. Comprou
um binóculo. Passa o tempo ajustando as lentes para melhor observá-los.
Os
abismos de Daniela são múltiplos. Lá dentro, protegidos do mundo, os sonhos
vingam. Assim, crus, matéria-prima. Cada plano abortado, cada sonho rasgado,
cada amor frustrado, cada porta fechada lá se abre e ganha vida.
Quando
ela os mostrou pra mim, levei um susto.
Tínhamos
por volta de dez anos e um filete de sangue nos uniu em pacto eterno. Daniela
queria que eu os registrasse e, ainda por cima, trouxesse à superfície parte do
subterrâneo. "Mas isso é invasão de privacidade!", argumentei.
Até hoje
não sei como aceitei. As coisas são como são, ué. A gente machuca depois
cicatriza e machuca de novo e por aí vai. Avestruz é que enfia a cabeça num
buraco. Que Daniela enterrasse os seus e tocasse a vida na superfície...
Ela deu
de ombros.
Da
primeira vez, foi uma viagem e tanto. Meus olhos acostumados à claridade
sentiram uma espécie de fobia naquele reino sem tempo, nem gravidade,
surrealista. Comprei uma câmera fotográfica para registrar com precisão, mas
quando o flash disparou, Daniela berrou lá de cima. Era dolorido demais.
Daí
pensei em fazer como os jornalistas: usar um gravador. Mas o bater insuportável
do coração dessa mulher - quando desço é só taquicardia - frustrou minhas
expectativas. Desde então, só conto com a memória. E, cá prá nós, acho que
Daniela quer que eu interfira na paisagem.
Sem falar
que sonho alheio contagia,
(pelo
menos ali dentro).
Já vi
paisagens que se contar, ninguém vai acreditar. Sabem o mar do mar? Ah, já
presenciei amores que deixariam Shakespeare enciumado e Bocage de quatro.
Conversei com gente tão dotada de ética e bondade. E voei tantas e tantas vezes
que hoje olho passarinho assim: olho no olho. Mas, é curioso, de uns tempos prá
cá, os sonhos de Daniela estão cada vez mais sinestésicos.
A
penúltima vez que lá estive, por exemplo, simples violetas me pareceram tão
carnívoras que corri até a superfície com medo, esbaforida. Daniela gargalhou.
Respondeu que a realidade andava opaca demais, devia ser isso, precisava de
emoção no submundo. "Também não precisava exagerar", respondi,
tomando fôlego. Deve ter funcionado, ela demorou um tempão para me chamar.
Então,
ontem: noite crua!
Um calor
insuportável na rua e Daniela nua, ajoelhada num canto, joelhos abraçados,
pingando. Desci. A terra estava mais vermelha e úmida. Suspeito que mais
fértil - as violetas deram resultado. Abri meu guarda-chuva (lágrima alheia
pega) e esperei, lá de dentro, um sonho abortado despencar.
Ah, meus
caros, foi de uma beleza como poucas. Do graveto seco que caiu do nada brotou
uma árvore e depois outra e mais outra. Na escuridão, de repente, um baita
risco lilás que foi crescendo e crescendo. E logo adiante um pôr do Sol que de
tão quente deu trégua pra chuva refrescar.
Daniela,
maluca, jogou um horizonte inteiro no abismo!
Ok, pode
parecer crueldade, a gente não deve fazer isso com amigo, mas, lá embaixo, eu
nem pensei nela. Estava tão encantada com a chuva pontiaguda de gravetos,
partidos ao meio, deslizando macios pela boca vermelha da
terra... Regurgitados em flor. Sol, correnteza, cavalos alados, horizonte.
Lagoa, destino, floresta...
Às vezes
é difícil voltar pra casa.
Tatiana Carlotti
Todos os direitos autorais reservados a autora.
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