No reino adocicado do Bolinho de Chuva [Tatiana Carlotti]
que me fizeram recordar esta receita...
Livro aberto, afinal, diz a lenda que tudo começa com o Verbo - e vou incluir uma travessa assanhada sobre a pia. Vejam que nela dois ovos se esparramam soberanos. Mexem e remexem, crianças alucinadas absorvendo o ar. Indecentes, eles logo se misturam. De dois viram um para crescer juntos. E nessa perda de compostura tingem a madeira da colher, agora pura flor de um aromático amarelão. Em cima deles, cinco colheres carregadas de açúcar despencam branquíssimas. Vêm para gerar o atrito adocicado à massa-menina que esfrega, enquanto caminha, seus pequenos cristais entre as pernas. Sim, ela está prestes a se tornar uma gemada.
Prestes... Porque o leite (apenas meia xícara) a observa ao lado da travessa, sacana e tranquilo, na temperatura ambiente, para umedecer a massa dos pés à cabeça. Seguro que é, escorre apenas 1/4 de si na travessa e então para... Agora, é a massa quem pedirá mais. Então, as mãos se enchem de farinha de trigo, afinal, é lei numa cozinha: tem sim de misturar pele e comida. O que não meleca não tem a menor graça. Ainda mais se a farinha for de padaria e afundar macia nas mãos antes de cobrir, feito um véu, a massa.
Ah, enganam-se os que pensam que há receita de Bolinho de Chuva. É a própria massa que determina o que precisa. Na vida, é tudo uma questão de consistência. O leite lambe os beiços e ouve o chamado. Vai se diluindo - um pouquinho aqui e outro ali - com cuidado, para que a massa tenha tempo de se acostumar com a densidade da farinha. Sim, é preciso mexer muito. Mandar ver. Divertir-se um bocado. Brincar até ela engrossar as pernas. Daí pode ligar o fogo. De preferência com um fósforo que arrepia as costas da caixinha. E preparar bem o banho, aquecer o óleo que deve lembrar um rio no fundo da panela.
Mas, vamos voltar à nossa cozinha. Com o óleo crispando de vontade na panela, chega a hora do fermento. Para tudo! Diante do fermento é preciso cerimônia. Porque ele requer bom presságio para expandir sua força. Coragem, guerreiros! E muita segurança ao pegá-lo com a colherzinha de café - essa medida genial que acolhe o que realmente importa na vida. Confiem nele. Só misturem. O cara é mágico. Sabe o que faz. Basta parar de pensar e deixá-lo livre de preocupações.
Agora, é procurar uma colher de tamanho médio para orientar as formas. Alerta: esqueçam a perfeição geométrica. Bolinhos são como são e é isso o que os torna tão perfeitos. E preparem-se: a colher tem de estar, pelo menos a pontinha, bem perto do óleo quente. Sentindo o frisson da coisa, entendem? É isso que dá a confiança para a massa se soltar soberana e se esparramar ao sabor do acaso. Ah... Não duvidem, na temperatura alta da fritura, ela estala! E cresce! E gargalha! E depois cora... As mais corajosas até se queimam, fiquem de olho nelas.
Experimentem fazer em casa!
Todos os direitos autorais reservados a autora.
3 comentários
A receita da Tatiana ganhou rumo poético, além da riqueza de detalhes com leitura de cunho gostoso e bem elabarada. Abs.
Gostei muito desta receita, parabéns Tatiana! Poesia pura de mãos dadas com a culinária.
Obrigada!! Abraços!
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