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No reino adocicado do Bolinho de Chuva [Tatiana Carlotti]

No reino adocicado do Bolinho de Chuva

Aos meus queridos André e Fernanda
que me fizeram recordar esta receita...

Livro aberto, afinal, diz a lenda que tudo começa com o Verbo - e vou incluir uma travessa assanhada sobre a pia. Vejam que nela dois ovos se esparramam soberanos. Mexem e remexem, crianças alucinadas absorvendo o ar. Indecentes, eles logo se misturam. De dois viram um para crescer juntos. E nessa perda de compostura tingem a madeira da colher, agora pura flor de um aromático amarelão. Em cima deles, cinco colheres carregadas de açúcar despencam branquíssimas. Vêm para gerar o atrito adocicado à massa-menina que esfrega, enquanto caminha, seus pequenos cristais entre as pernas. Sim, ela está prestes a se tornar uma gemada.

Prestes... Porque o leite (apenas meia xícara) a observa ao lado da travessa, sacana e tranquilo, na temperatura ambiente, para umedecer a massa dos pés à cabeça. Seguro que é, escorre apenas 1/4 de si na travessa e então para... Agora, é a massa quem pedirá mais. Então, as mãos se enchem de farinha de trigo, afinal, é lei numa cozinha: tem sim de misturar pele e comida. O que não meleca não tem a menor graça. Ainda mais se a farinha for de padaria e afundar macia nas mãos antes de cobrir, feito um véu, a massa.

Ah, enganam-se os que pensam que há receita de Bolinho de Chuva. É a própria massa que determina o que precisa. Na vida, é tudo uma questão de consistência. O leite lambe os beiços e ouve o chamado. Vai se diluindo - um pouquinho aqui e outro ali - com cuidado, para que a massa tenha tempo de se acostumar com a densidade da farinha. Sim, é preciso mexer muito. Mandar ver. Divertir-se um bocado. Brincar até ela engrossar as pernas. Daí pode ligar o fogo. De preferência com um fósforo que arrepia as costas da caixinha. E preparar bem o banho, aquecer o óleo que deve lembrar um rio no fundo da panela.

E eu já ia me esquecendo... Antes, vale a pena manter o charme, e salpicar a massa com um pouquinho de canela ou algumas gotas de baunilha. Bem pouquinho. Só para dar aquele perfume das mulheres que passam. Não, com todo respeito, as francesas não têm nada a ver com esta receita... Estou falando das mulheres brasileiras, daquelas que o Vinícius cantou tão bem: Como te adoro, mulher que passas. Que vens e passas, que me sacias. Dentro das noites, dentro dos dias! 

Sim, uma massa que passa e pinga...
Densa, gostosa, poderosa, feminina.

Mas, vamos voltar à nossa cozinha. Com o óleo crispando de vontade na panela, chega a hora do fermento. Para tudo! Diante do fermento é preciso cerimônia. Porque ele requer bom presságio para expandir sua força. Coragem, guerreiros! E muita segurança ao pegá-lo com a colherzinha de café - essa medida genial que acolhe o que realmente importa na vida. Confiem nele. Só misturem. O cara é mágico. Sabe o que faz. Basta parar de pensar e deixá-lo livre de preocupações.

Agora, é procurar uma colher de tamanho médio para orientar as formas. Alerta: esqueçam a perfeição geométrica. Bolinhos são como são e é isso o que os torna tão perfeitos. E preparem-se: a colher tem de estar, pelo menos a pontinha, bem perto do óleo quente. Sentindo o frisson da coisa, entendem? É isso que dá a confiança para a massa se soltar soberana e se esparramar ao sabor do acaso. Ah... Não duvidem, na temperatura alta da fritura, ela estala! E cresce! E gargalha! E depois cora... As mais corajosas até se queimam, fiquem de olho nelas. 

Então, do nada, um bolinho nasce! E logo depois vem outro bolinho, e mais outro, e mais outro, e mais outro. É uma invasão de bolinhos que se eu contar vocês não acreditam... Depois de tanto pular, eles pegam as mãos da escumadeira generosa rumo a um descanso gostoso, o abraço acolhedor do papel toalha que deve estar preparado sim sr. sobre uma travessa para absorver todo o excesso de óleo, naquele fechar delicioso dos olhos.

Agora, basta chacoalhá-los um pouquinho. E o mais gostoso na arte dos bolinhos de chuva é salpicá-los de muito, mas muito açúcar. Sem esquecer, obviamente, da pitada de canela. A mais bem humorada das especiarias que atiça e colore a vida, enchendo a casa do mais delicioso aroma. 

Experimentem fazer em casa!
Bom apetite!

Tatiana Carlotti - Balzaquiana convicta e amante das letras. Pulsa no Centro de São Paulo ao lado do Balzac, seu gato. Site: SobremargenS.
Todos os direitos autorais reservados a autora.

3 comentários

sogueira disse...

A receita da Tatiana ganhou rumo poético, além da riqueza de detalhes com leitura de cunho gostoso e bem elabarada. Abs.

Unknown disse...

Gostei muito desta receita, parabéns Tatiana! Poesia pura de mãos dadas com a culinária.

Tatiana Carlotti disse...

Obrigada!! Abraços!