A
sinagoga
(Publicado no livro Diário de Uma Quase/ 2010)
Tínhamos
fome e instintos de viver. Uma vontade tão grande de viver que a fome se
tornara um combustível, gasolina incandescente movendo, corroendo,a circular
por todos os lados e não chegar a lugar algum. Éramos amebas protozoários
aves répteis, qualquer forma de vida, deslizante, querendo só
a continuidade, o caminhar contínuo pela terra, como existência, como
forma de se separar do caos e continuar in-diví-duo. O vazio em nós era
gigante, devorador.
Havia uma
dor física, desesperada. Não sei há quantos dias não comíamos. Só cachaça.
Havia tonéis. Fabricávamos muita. Ninguém mais comprava. Não existia dinheiro,
nem comida. Então bebíamos e aplacávamos a realidade com um sonho etílico
possível. Não era possível. O vácuo em nosso estômago apenas crescia,como uma
quimera que se alimenta de miséria. Enlouquecíamos bêbados de cachaça e
fome.
Éramos
uns treze. Miseráveis, esfarrapados. Nossa choça pairava suja no meio da
caatinga esturricada. Impossível pra quem olhava acreditar que
aquilo parava em pé. Suja e estropiada, esfomeada de qualquer
cor, como nós, de qualquer carne. Na boca ou na barriga. Já não falávamos.
Apenas olhos perdidos,medindo os membros dos outros e imaginando se daria,
limpo os grandes ossos secos, qualquer fiapo de carne magra, músculo rijo
pra uma sopa humana.
Faltava
coragem. Para lutar e para realmente agir.
Eu já
tivera tudo. Vivi, estudei, amei e até cri e hoje não há mendigo que eu
não inveje por não ser eu. Fiz de mim o que não pude e o que podia fazer de
mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Quando quis tirar a máscara,
estava pregada à cara, quando a tirei e me vi no espelho, já tinha
envelhecido. Conto minha história, pra se ver como se é ser
triste. Somente olhos e vontades. Comfome, preenchendo a barriga com palavras.
Com fome e contando uma história.
Foi
quando olhei o céu. O sol parecia um enorme ovo frito no azul sem nuvens no
céu, ninguém pensava em mais nada. Eu olhava o céu. E vi.
Grandes carcarás, como estandartes da morte a medir, como eu fazia, nossas
carnes humanas e esperar a hora da seara.
Seus voos
rasantes eram cada vez mais baixos, cada vez mais agourentos. Grandes asas
cobriam o sol, refrescavam o calor, mas anunciavam um fim. Quase sem
forças estirei no chão. Os outros doze me olhavam, sem forças, ou vontade
(de), pra me proteger. Círculos cada vez mais concêntricos foram se desenhando
acima de mim. Uma tontura seca, como sempre imaginei ser a da morte. Com ela,
desceu um,pernas secas, asas grandes, corpo magro e esfarrapado, Caronte, como
deve ser o fim. Quieto, esperei a hora. Ele veio, corajosamente, pegar a
parte que lhe cabia em meu latifúndio. Seus bicos, suas garras eram
velozes, ágeis, calculados. Maseu fui mais rápido. Ao alcance da mão,
grudei-lhe o pescoço e apertei. Havia um cheiro podre que não sei se
emanava de mim ou da criatura. Só apertei. Senti raiva, senti medo, senti
prazer. Agonizante, sua cabeça deitou em meus pulsos.Em semanas, primeira vez
sorri.
Doze
cabeças estavam voltadas pra mim. Outros sorrisos despontavam.
Naquela
sinagoga de fome, despontou o riso, espectral, demoníaco, estridente,dado em
plena luz, sem pudores. Um Deus adormecido não nos espreitava e,provável, com
nossa miséria não se divertia. Por isso, nessa hora, não tínhamos vergonha
alguma. Dançamos ao som do desespero enquanto depenávamos acaça.
Ave
limpa, afoitos, despejamos o pouco da água na panela e acendemos o fogo. Quatro
horas de gestação invertida, esperando aquele feto negro e de músculos duros
que iria preencher nossos vazios. Quatro horas de agonia. Ao abrir a panela, o
cheiro adocicado de coisa podre misturou-se ao outros cheiros inomináveis
daquele mundo. Mas a carne ainda era dura, mesmo com a fome tanta não
havia mais dentes pra tanta resistência. Treze cabeças
desoladas despejavam novamente a ave na panela. Dois litros da cachaça
inútil e abundante. Mais cinco horas de aflição. Ainda duro, mas sem
paciência, rasgamos músculos e carnes, com mãos, com facas cegas, com
unhas e, disputando a caça parca do dia, banqueteamos nossa porção de
morte, vida e miséria.
Bicho papão
(Publicado no livro
Diário de Uma Quase/ 2010)
O monstro vinha quase toda noite. Era só a mãe apagar a luz que ele deslizava leve, sutil, fluido e esfumaçado. A
princípio, ele só olhava. Ela nem sequer abria os olhos, mas
percebia as brasas queimando no escuro, esperando,aguardando, com
um cheiro nauseabundo a inundar as narinas, suadas e dilatadas, da
menininha assustada. No princípio era isso, olhava. Depois ia embora, mas
deixava a presença na memória, assustada demais, que não pegava no sono, o
que talvez explique as olheiras que começaram a deslizar por sua face.
Monstros
deveriam ser impedidos de agredir, de atacar, mas eles sempre encontram
o atalho mais curto até o susto das criancinhas.
Ninguém notava
absolutamente nada. As olheiras, sozinhas, em pouco tempo se
somaram a um cansaço que a deixava lânguida em toda a pequenez desajeitada
de pré-adolescente. Letargia. Mas ainda era pouco. O monstro já
se revelava e nem que as noites insones deformassem completamente a
impúbere criaturinha, a vontade de ferir, machucar, tomar pra si se
revelaria em sua forma quase que abstrata. Por toda a vida, as marcas do
medo ficariam. O medo é o pior ferro em brasa, queima profundo e deixa
sequelas, queima mais e deixa mais sequelas, queima as sequelas formando
outras, maiores, mais fundas, mais eternas e invisíveis. O que
verdadeiramente dói é invisível aos olhos, dos outros.
A litania do
monstro formava já uma ladainha de gemidos ocos, sentidos, dor ou prazer,
qualquer limiar, impossível de traçar. Existia ele e ela sabia. Estava instaurado
o medo. Estava instaurado um certo caos. Era crescente. Um buraco negro
incontrolável. Não queria mais a menina dormir, descansar
era-lhe impossível... Era-lhe impossível qualquer sonho. Maturidade
sofrida em corpo infantil. As carnes parcas da criaturinha sobre a cama
nem sequer reclamar podiam. A mãe ocupada demais. Os irmãos crescidos e já
indiferentes a medos.Ou causadores dele num mundo que não é feito para meninas.
Mas ela sabia que ele existia. Mais cedo ou tarde, suas mãos grandes,
ásperas e peludas passeariam pelo corpo impúbere. Cedo ou quem sabe cedo
demais não haveria escapatória.
Seu corpinho
seria destroçado por toda a brutalidade que vinha dessa luz efêmera, desse bafo
forte, desses brilhos maldosos atrás da porta, espiantes, curiosos
de suas formas humanas.
Que se faz?
Sozinha no mundo, esquecida no escuro, com a vida na mão e nenhuma
experiência de como se defender? Que se faz com tanta tristeza
ainda misturada ao gosto do leite materno? Ah, a indiferença, por fim. Que
se faz com ela? Se por um lado a corja humana não a notava, por outro
lado, devido ao monstro, ela sabia que estava perdida. O Caminho é longo,
a volta é impossível.
Consciência
demais faz mal. Mais ainda na infância. Conhecimentos em excesso destorcem
a vista, os miolos. Tudo se desmancha quando se sabe. E ela já sabia.
O monstro já existia. Não havia retorno. Quem sabe, nem mesmo, só por um
ínfimo instante, não havia final feliz?
Foi quando uma
noite. Só isso, uma noite. Começada como tantas outras.
Com medos, com
inquietações, com a dor da espera. Mais uma noite. Mais alguns pesadelos.
Uma respiração suada em todos os poros, pela extensão de pele macia de
menina em
transformação. Foi nessa noite que ele chegou e entrou.
Chegara
a hora. Sem chances de fuga qualquer. Pra qualquer um chega o dia e nada
há de especial nisso. Ele chegou. Ela, a pequena e triste e comum menina,
não esboçou reação. Sussurrou apenas, palavras inaudíveis e sempre
inúteis, clamando alguma humanidade:
— Papai...
Compra, venda
e negócios sentimentais
(Publicado no livro Diário de Uma Quase/ 2010)
Eu estava no
banho. Ao sair, corpo pingando, costas muito molhadas, ela me diz:
— Acabou de dar
no jornal. Aquele diretor, daquele filme, está vendendo a mulher. São apenas 2
milhões.
— Dólares ou
reais?
— Libras.
— Uau, isso
equivale a muito dinheiro. Paga-se a quem?
— Como assim, a
ele, é claro.
Devo dizer que o
“é claro” dela, dito de canto de boca, me excitava. Corpo molhado, toalha
caindo, outras partes subindo...
—
Excentricidades. No mundo deles é permitido, eu acho.
Acredito que meu
“eu acho!” sempre a irrita.
— No nosso
também é.
Agora, o dito no
canto da boca era uma ironia. Isso também me irritava.
As coisas
começaram a fazer movimento inverso. Umas a subir, outras a cair.
— Não acho que
valha a pena, falei sutil.
— Peraí, não
valho a pena?
— Eu disse que
não vale a pena. Mas, tem sempre um doido disposto a comprar tudo, sempre tem.
— Quando eu me
refiro a mim, não sou algo que um doido compra.
— Mas eu não me
referi a você, em momento algum.
— O assunto era
eu.
— Não, disse
assustado, o assunto era a mulher dele, à venda.
— Você sempre se
desvia quando se sente acuado, é digno de gente frouxa.
Definitivamente,
agora não havia mais riso. Nem conversa. Revidar?
— Meu amor, eu
não te venderia. Desfrutar seu corpo é um prazer reservado a um único homem,
por sorte, loteria divina, ou o que quer que seja, esse homem sou eu.
— Bom, das duas
uma, ou o meu corpo não vale um mísero centavo no ebay, ou você está com medo
de que eu ache alguém disposto a pagar mais que isso pra ter não apenas meu
corpo. E desfrutar mais do que você consegue. Essa, assim como outras, doeu.
Ego ferido é o
pior machucado depois de qualquer fratura exposta.
— Eu desfruto mais
do que seu corpo. Desfruto sua companhia, isto é, quando não sou obrigado a
ouvir futilidades, se é que você entende.
— Isso é
patético.
— Eu também
acho. Afinal, você é minha mulher, não está à venda.
— Não. O
patético nunca foi vender ou não vender, lei do mercado, se é que você entende. O patético
é a fuga que você acha que achou. Esquece. Vou assistir TV.
Primeiro: eu não sei de onde surgiu essa conversa. Ou pra onde ele foi
e irá. Segundo: elas, as conversas, estavam se tornando cada vez mais
estranhas, quem sabe bizarras, e isso é um indício. Melhor dizendo, indício é a
pista deixada por um serial killer no locus do crime; indício é um cabelo louro
encontrado no seu pescoço por uma namorada morena, ou mulata; indicio são
restos de fogueira esquecidos pelos bandidos no começo de filmes de faroeste.
Essa conversa
e todo o pacote de outras era um indicador. A) ela estava
louca. B) tudo indicava o fim.
Três dias depois
nós terminamos. Três dias depois, o diretor vendeu a mulher. As duas cenas
foram patéticas. Ela, com cara de lágrimas já secas, pra mim falsas, juntando
calcinhas penduradas pela casa, resultado de sexo ardente ou da lavagem
compulsiva. O diretor, na frente de inúmeras e alcoviteiras
câmeras
entregando a mulher, ou amante, ou posse, com direito à coleira no pescoço,
cravejada de pedras, e discurso inflamado. Quarto dia, a boa e velha solidão em
casa. Pernas cansadas pra cima. O bom e velho sofá sustentando minha bunda e
meu saco coçado. Eu em frente à TV.
No dia seguinte,
happy hour com amigos. A vida de solteiro tem seus melindres, tem seus códigos
mutantes. Você sai, desaprende e, quando volta,
percebe que tudo
mudou. Inclusive o afeto que toda mulher tem por homens de aliança. Talvez
porque eu já não usasse aliança. Aí vem a encruzilhada: não sei o que dói mais.
O pé na bunda, a falta do compromisso no dedo, alimentando o desejo das feras
insaciáveis por homens comprometidos, ou ela, ex-noiva, entrando no bar, com um
moço bonitão, usando um espetacular colar com três voltas de pérolas. E um
sorriso de cadela no rosto.
Paulo Sesar
Pimentel
Todos os
direitos reservados ao autor.
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