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Paulo Sesar Pimentel [Professor e Escritor Brasileiro]

Paulo Sesar Pimentelnasceu em 31 de maio de 1981em Coronel Sapucaia–MS, mas mora em Mato Grosso há mais de 20 anos.

É graduado em Letras (Unemat/ Sinop-MT) e mestre em Estudos de Linguagem (MeEL/UFMT).

Publicou as coletâneas de contos Café com Formigas, Ângulo Bi (com outros autores mato-grossenses) e o guia de leitura Dez Modernistas (com Santiago Villela Marques).

Atua como professor de literatura no Ensino Médio e Superior em Cuiabá-MT.

Paulo Sesar Pimentel, autor do livro (Diário de uma quase) publicado pela Carlini& Caniato Editorial, recebeu neste ano o prêmio de menção honrosa no prestigiado 12º Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em Passo Fundo – RS,  pelos contos inscritos: “De corpo e alma”,“A verdadeira dor” e “O cão sem plumas”.
  
12º Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães 


Anúncio foi feito após a solenidade de abertura da 14ª Jornada Nacional de Literatura Josué Guimarães, que empresta seu nome ao Concurso de Contos realizado pelas Jornadas Literárias há 12 edições, completaria 90 anos em 2011. A atriz, poetisa e cantora Elisa Lucinda prestou sua homenagem, em nome de todos os participantes desta 14ª Jornada, por meio de poesia e música. Na sequência, o diretor do Instituto Estadual do Livro Ricardo Silvestrin anunciou os vencedores do 12º Concurso de Contos Josué Guimarães: João Goulart de Souza Gomes foi o grande vencedor. O escritor baiano foi premiado com R$ 5 mil e uma viagem de dez dias a Santiago de Compostela, na Espanha, onde poderá estudar durante este período na Universidade de Compostela.

Gilmar Penteado, que conquistou o segundo lugar, recebeu R$ 3 mil como premiação. Receberam menção honrosa Paulo Cesar Pimentel e Guilherme Gigliane. Os filhos de Josué Guimarães, Rodrigo e Adriana Machado Guimarães, entregaram os prêmios aos vencedores.



A VERDADEIRA DOR
(Menção Honrosa no 12º Concurso Nacional de Contos 
Josué Guimarães)

Já fazia alguns dias que fora sequestrado. Não havia como precisar quantos. Estava fraco. Uma ração daquelas, por dia, quem se mantem em pé? 

Mesmo água, regrada. Fome de tudo. A liberdade é cara, mas tanta coisa boa que vem junto. Será cara a liberdade ou os seus acessórios? No final, pensando, aúnica coisa a se fazer no claustro, chegou à conclusão de que não sabia definir liberdade. Saberia definir algo? Por mais que seu cérebro se esforçasse, algo escapava, talvez fosse a fome, a sede, o medo, a dor. Talvez apenas o contato cara a cara consigo mesmo, sem ninguém ver quase o dia todo. Sabia mesmo que queria cama, comida, água correndo pelos poros, água mineral descendo pela garganta, gelada,tomada em um copo de cristal, pois o ritual às vezes é mais importante que a necessidade. Pensava nos seios de Mocinha, tão em flor, a moça, tão em flor seu sexo, aberto ao mundo, escancarado às vontades babentas de um velho sátiro. A esposa em casa, gorda e vestida, ornamentada de joias, rica,por ele, há tantos anos, com a alma do primeiro milhão no dia anterior.

E agora preso. E agora sem nada que não vontades e carências. No fundo, ansiava pagassem o resgate e calassem a dor. Não, não a vergonha de ser tratado como bicho, porque mesmo a dignidade é uma vaidade supérflua. Dor mesmo, na carne, em feridas vermelhas, em cancros abertos, em lascas de pele, em amputações. Aí a verdadeira dor. Todos os dias, eles vinham e cortavam um pedacinho dele. Começaram pelos dedos. Pensando bem, a julgar pelos pés, dez dias. Ao olhar para as mãos, primeiro a esquerda, depois a direita, mais três dias.

Ao menos ele podia escolher. O pé, sapato cobre, o pé, sapato esconde. Ele tinha uma coleção de sapatos argentinos e italianos, caros, suficientes para aplacar ador, que começa com os olhos. Na mão, mínimos e anulares não fazem tanta falta.

Ao menos o anular não carrega mais o compromisso e talvez à merda a patroa
gorda, emperiquitada, enfeitada às turras pra esconder sua frustração. Quem sabe Mocinha, do subúrbio pra sociedade, do desconhecimento para as revistas da moda, tão linda, tão em flor, brilhando nas revistas e despertando o desejo dos machos no cio da cidade. Dele. Minha. De mais ninguém. Só sair dali. As faltas se compensam com dinheiro. Defeito tem mesmo é pobre. Ele teria necessidades especiais. Isto o tornava até mais charmoso. Olha, aquele não é o empresário que foi sequestrado, torturado, passou dias no cativeiro, mas saiu de lá, ergueu-se das cinzas, tornou-se mais titã? Sim, é ele, e está charmoso, velho e charmoso,melhor, experiente e charmoso. Aqueles cabelos grisalhos cada vez mais brancos dão a ele, junto com a cintura, um ar de prosperidade e sabedoria que só quem viu a morte de cara tem. Quem viu a morte e ganhou dinheiro. Nessa hora, ele sorria, mesmo sentindo as hemorragias nas extremidades, mesmo sentindo a dificuldade em mover os músculos da face, inchados de tanta precaução dos bandidos. Mas vivo, prestes a viver com Mocinha, em flor, prestes a mandar uma esposa, árvore de natal o ano todo, sem presentes, ao inferno. Podia sentir a pele fresca, tão fresca, sorri pensando em uma peça rodrigueana, pensando que todas as mulheres deveriam estacionar nos quinze anos, na pele macia, pós-espinhas,pré-rugas, recém menstruadas, ainda com o doce da pureza a escorrer nas coxas brancas, nada de marcas de sol, nada de marcas de pecado ou desejo, corpos na areia, numa espécie de grande mercado de carnes, nada de marcas na alma,homens suados exercendo sua animalidade na flor. Uma moça, ainda com pudores, quanto mais, melhor. Com dedos rápidos, a afastar dedos rápidos, que se esgueiram por suas fendas, dedos ágeis que arrancam o prazer da moça,mesmo quando a boca grita não e a raça, o instinto, insiste no sim. Dor mesmo é perder isso. Dignidade é algo que se constrói quando os ventos são favoráveis.

Não tocar Mocinha, seus quinze anos em flor, é matar a alma, é morrer em guerra, é sofrer o céu abandonado por Deus. Ah, ele perdera dedos, perdera algo,perderia mais, talvez. Se aquela esposa desgraçada não pagasse o resgate, se aquela negros naturalmente, não pagasse o valor pedido pelos bandidos... o que seria mulher horrorosa que ele pensara amar, um dia, na época dos cabelos dele, dia a dia, na promessa dos bandidos, a perder partes do corpo, ora essa.

Deus fora generoso com os homens, dera a eles pingentes e apêndices que, a
frente do corpo, avançando a frente do corpo, ofereciam o mundo como conquista. Agora, na palavra dos seqüestradores, ele tinha que escolher o que
perder, como se seu corpo fosse a grande loteria da carne, e ele a enfeitada mulher que gira o globo e retira as bolas, numeradas, dando a felicidade a algum desgraçado, a loteria da carne. Não, as bolas não, metáfora cruel para alguém naquela situação. Ele podia dizer que parte seria cortada e enviada à esposa, na tentativa de convencer a megera de que era séria a ameaça. Esgueirando-se em sua mente, de repente, começou a surgir uma certeza, um medo, uma consciência. E se? Tremia e, sentindo o corpo chacoalhar, sabia que mais sangue seu vermelhava aquele chão imundo. Ele, um prócer daquela cidade, daquele estado, tão respeitado, tão admirado, tão amado. Ao menos por Mocinha, em flor,que lhe pagava os confortos físicos com braços quentes e envolventes, dóceis e ágeis, como a língua dele, como a língua dela. Ah, perder o paraíso. Perder a árvore do bem e do mal que a menina de quinze anos traz ainda entre as pernas.

Caso passem os quinze anos, a fruta apodrece, se ela for colhida aos quinze, desgraçados os que tentarem naquela árvore saciar a fome. Um sátiro. Um safado. Com tanto medo. Os libidinosos, os viciados, os dependentes, toda corja repleta de pecados, tem algo além a que se apegar, sentem mais.

Eles entraram falando entre si. O homem se encolheu. Nova parte, novas perdas. A mulher, matrona safada e enfeitada, sentada no sofá de couro tratado,branco que doía as vistas, com a mesa de teça à frente, com uma jarra de suco natural recém batido, adoçado com leite condensado, calorias em lata para pelancas em corpo, estalando os beiços pintados, pendidos pela última aplicação de polímero, grande e gordos, combinando com os seios, com a cintura, com a alma. As amigas ao redor, ar choroso da esposa, leitoa de natal com uma maçã na boca, chorando não ter como pagar o resgate. E tinha. Tanto dinheiro, ela sabia onde estava, tudo, quase tudo, o suficiente pra pagar pela vida dele, que dera uma vida a ela, páginas e páginas de revistas de fofoca, a madame, viagens para Europa, fim de semana na casa de praia, na casa de campo, vadia gorda. Dor mesmo é aguentar aquela mulher por tanto tempo. Mesmo sem Mocinha, mesmo sem a flor, tantos jardins a se visitar, tantos parques com plantas exóticas que pedem pra ser conhecidas, e a boa e velha instituição, o medo de ser mal falado num casamento ferrado. Mesmo infundado, dor mesmo era continuar naquele barco.
Agora sabia, mas talvez não resolvesse esse problema. A mulher, talvez,
não pagaria.
“Então, o que você escolhe perder agora?”
Já não podia assumir um casamento, agora não poderia assumir um noivado. Com uma dor lancinante, a faca devia estar cega, ou havia prazer na coleta da prova, ele sorriu. Agora, as instituições eram impossíveis, fisicamente impossíveis, meu amor, pensou em dizer à Mocinha, levantando uma taça,alisando a toalha de linho da mesa. Pra mim, alianças só na palavra. Sorriu,abertamente, e parecia o riso um esgar. Tão distante Mocinha, em flor, tão distante a mesa cara, elegante, tão distante seus dedos restantes no meio das pernas da moça, Mocinha, em flor. Levou um tapa na cara, dedos espalmados do bandido, os cinco no rosto,apenas três em cada mão,os próprios. Não teve tempo de explicar que o riso vinha da ironia.
Talvez também houvesse a necessidade de explicar o que é ironia. Caído no chão, dormiu, desmaiou, apagou,que diferença faz?

Escuro no claustro. Deve ser noite. Sombras opacas ainda permitem alguma visão. O toco de hoje ainda sangra, dói. Não há humilhação. Não há sonhos com Mocinha, não há flores. Fecha os olhos e vê a patroa. Roncando alto,afogando em banhas uma respiração difícil, dispneia e baba, lençóis egípcios,oitocentos fios de linho puro, alvo, branco, claro, nevoento. O famoso sono dos justos. A leitoa que carrega no anular seu nome, carrega na bolsa sua conta,carrega na cabeça suas senhas, carrega no pescoço seus ouros, carrega nas costas sua vida, mais magra, muito magra agora, tantos dedos, quatorze, perdidos.
Ela não pagará. Nada, nem um centavo para esses marginais, uma hora dessas, meu marido já deve estar morto, consciência em paz, não há nada a fazer, ninguém sobrevive a tantos dedos na vida. No tempo presente, ela dorme na paz do impossível, na paz da impossibilidade, na paz do outro. Ele agoniza, marido cativo, e pensa no que sobra pra cortar, pensa no que sobra pra perder, pensa no que pode ganhar e a balança pende contrária à lógica. Ele chora e nas lágrimas ainda abundantes, descobre o que é dor, dor mesmo, e percebe que elas são tantas que nem tem dedos, mais, pra contar.


Livros de Paulo Sesar Pimentel


 





Seu primeiro livro Café com Formigas
Autor: Paulo Sesar Pimentel
Reunião de contos matogrossenses













Autor: Paulo Sesar Pimentel
Edição: 1ª
Ano de publicação: 2010
ISBN: 978-85-8009-013-0
Tamanho: 13,8 x 20,8 cm
Número de páginas: 104
Gênero: Literatura - Contos
Editora: Carlini & Caniato
Preço de capa: R$20,00

Diário de uma quase é o segundo livro de contos de Paulo Sesar. Os contos descrevem personagens contemporâneos com sensações incômodas e, talvez, deslocadas de uma galeria de almas tristes diante das (in)capacidades das relações com as formas estabelecidas de mundo. No entanto, no ponto onde as possíveis experiências ruins e traumáticas ultrapassam o, imaginado, individual e tornam-se coletivas e, de algum modo, belas.






A sinagoga 
(Publicado no livro Diário de Uma Quase/ 2010)

Tínhamos fome e instintos de viver. Uma vontade tão grande de viver que a fome se tornara um combustível, gasolina incandescente movendo, corroendo,a circular por todos os lados e não chegar a lugar algum. Éramos amebas protozoários aves répteis, qualquer forma de vida, deslizante, querendo só a continuidade, o caminhar contínuo pela terra, como existência, como forma de se separar do caos e continuar in-diví-duo. O vazio em nós era gigante, devorador.

Havia uma dor física, desesperada. Não sei há quantos dias não comíamos. Só cachaça. Havia tonéis. Fabricávamos muita. Ninguém mais comprava. Não existia dinheiro, nem comida. Então bebíamos e aplacávamos a realidade com um sonho etílico possível. Não era possível. O vácuo em nosso estômago apenas crescia,como uma quimera que se alimenta de miséria. Enlouquecíamos bêbados de cachaça e fome.

Éramos uns treze. Miseráveis, esfarrapados. Nossa choça pairava suja no meio da caatinga esturricada. Impossível pra quem olhava acreditar que aquilo parava em pé. Suja e estropiada, esfomeada de qualquer cor, como nós, de qualquer carne. Na boca ou na barriga. Já não falávamos. Apenas olhos perdidos,medindo os membros dos outros e imaginando se daria, limpo os grandes ossos secos, qualquer fiapo de carne magra, músculo rijo pra uma sopa humana.

Faltava coragem. Para lutar e para realmente agir.

Eu já tivera tudo. Vivi, estudei, amei e até cri e hoje não há mendigo que eu não inveje por não ser eu. Fiz de mim o que não pude e o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Quando quis tirar a máscara, estava pregada à cara, quando a tirei e me vi no espelho, já tinha envelhecido. Conto minha história, pra se ver como se é ser triste. Somente olhos e vontades. Comfome, preenchendo a barriga com palavras. Com fome e contando uma história.

Foi quando olhei o céu. O sol parecia um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém pensava em mais nada. Eu olhava o céu. E vi. Grandes carcarás, como estandartes da morte a medir, como eu fazia, nossas carnes humanas e esperar a hora da seara. 

Seus voos rasantes eram cada vez mais baixos, cada vez mais agourentos. Grandes asas cobriam o sol, refrescavam o calor, mas anunciavam um fim. Quase sem forças estirei no chão. Os outros doze me olhavam, sem forças, ou vontade (de), pra me proteger. Círculos cada vez mais concêntricos foram se desenhando acima de mim. Uma tontura seca, como sempre imaginei ser a da morte. Com ela, desceu um,pernas secas, asas grandes, corpo magro e esfarrapado, Caronte, como deve ser o fim. Quieto, esperei a hora. Ele veio, corajosamente, pegar a parte que lhe cabia em meu latifúndio. Seus bicos, suas garras eram velozes, ágeis, calculados. Maseu fui mais rápido. Ao alcance da mão, grudei-lhe o pescoço e apertei. Havia um cheiro podre que não sei se emanava de mim ou da criatura. Só apertei. Senti raiva, senti medo, senti prazer. Agonizante, sua cabeça deitou em meus pulsos.Em semanas, primeira vez sorri.

Doze cabeças estavam voltadas pra mim. Outros sorrisos despontavam.
Naquela sinagoga de fome, despontou o riso, espectral, demoníaco, estridente,dado em plena luz, sem pudores. Um Deus adormecido não nos espreitava e,provável, com nossa miséria não se divertia. Por isso, nessa hora, não tínhamos vergonha alguma. Dançamos ao som do desespero enquanto depenávamos acaça.

Ave limpa, afoitos, despejamos o pouco da água na panela e acendemos o fogo. Quatro horas de gestação invertida, esperando aquele feto negro e de músculos duros que iria preencher nossos vazios. Quatro horas de agonia. Ao abrir a panela, o cheiro adocicado de coisa podre misturou-se ao outros cheiros  inomináveis daquele mundo. Mas a carne ainda era dura, mesmo com a fome tanta não havia mais dentes pra tanta resistência. Treze cabeças desoladas despejavam novamente a ave na panela. Dois litros da cachaça inútil e abundante. Mais cinco horas de aflição. Ainda duro, mas sem paciência, rasgamos músculos e carnes, com mãos, com facas cegas, com unhas e, disputando a caça parca do dia, banqueteamos nossa porção de morte, vida e miséria.


Bicho papão 
(Publicado no livro Diário de Uma Quase/ 2010)

O monstro vinha quase toda noite. Era só a mãe apagar a luz que ele  deslizava leve, sutil, fluido e esfumaçado. A princípio, ele só olhava. Ela nem sequer abria os olhos, mas percebia as brasas queimando no escuro, esperando,aguardando, com um cheiro nauseabundo a inundar as narinas, suadas e dilatadas, da menininha assustada. No princípio era isso, olhava. Depois ia embora, mas deixava a presença na memória, assustada demais, que não pegava no sono, o que talvez explique as olheiras que começaram a deslizar por sua face.

Monstros deveriam ser impedidos de agredir, de atacar, mas eles sempre encontram o atalho mais curto até o susto das criancinhas.

Ninguém notava absolutamente nada. As olheiras, sozinhas, em pouco tempo se somaram a um cansaço que a deixava lânguida em toda a pequenez desajeitada de pré-adolescente. Letargia. Mas ainda era pouco. O monstro já se revelava e nem que as noites insones deformassem completamente a impúbere criaturinha, a vontade de ferir, machucar, tomar pra si se revelaria em sua forma quase que abstrata. Por toda a vida, as marcas do medo ficariam. O medo é o pior ferro em brasa, queima profundo e deixa sequelas, queima mais e deixa mais sequelas, queima as sequelas formando outras, maiores, mais fundas, mais eternas e invisíveis. O que verdadeiramente dói é invisível aos olhos, dos outros.

A litania do monstro formava já uma ladainha de gemidos ocos, sentidos, dor ou prazer, qualquer limiar, impossível de traçar. Existia ele e ela sabia. Estava instaurado o medo. Estava instaurado um certo caos. Era crescente. Um buraco negro incontrolável. Não queria mais a menina dormir, descansar era-lhe impossível... Era-lhe impossível qualquer sonho. Maturidade sofrida em corpo infantil. As carnes parcas da criaturinha sobre a cama nem sequer reclamar podiam. A mãe ocupada demais. Os irmãos crescidos e já indiferentes a medos.Ou causadores dele num mundo que não é feito para meninas. Mas ela sabia que ele existia. Mais cedo ou tarde, suas mãos grandes, ásperas e peludas passeariam pelo corpo impúbere. Cedo ou quem sabe cedo demais não haveria escapatória.

Seu corpinho seria destroçado por toda a brutalidade que vinha dessa luz efêmera, desse bafo forte, desses brilhos maldosos atrás da porta, espiantes, curiosos de suas formas humanas.

Que se faz? Sozinha no mundo, esquecida no escuro, com a vida na mão e nenhuma experiência de como se defender? Que se faz com tanta tristeza ainda misturada ao gosto do leite materno? Ah, a indiferença, por fim. Que se faz com ela? Se por um lado a corja humana não a notava, por outro lado, devido ao monstro, ela sabia que estava perdida. O Caminho é longo, a volta é impossível.
Consciência demais faz mal. Mais ainda na infância. Conhecimentos em excesso destorcem a vista, os miolos. Tudo se desmancha quando se sabe. E ela já sabia. O monstro já existia. Não havia retorno. Quem sabe, nem mesmo, só por um ínfimo instante, não havia final feliz?

Foi quando uma noite. Só isso, uma noite. Começada como tantas outras.

Com medos, com inquietações, com a dor da espera. Mais uma noite. Mais alguns pesadelos. Uma respiração suada em todos os poros, pela extensão de pele macia de menina em transformação. Foi nessa noite que ele chegou e entrou.

Chegara a hora. Sem chances de fuga qualquer. Pra qualquer um chega o dia e nada há de especial nisso. Ele chegou. Ela, a pequena e triste e comum menina, não esboçou reação. Sussurrou apenas, palavras inaudíveis e sempre inúteis, clamando alguma humanidade:

— Papai...


Compra, venda e negócios sentimentais
(Publicado no livro Diário de Uma Quase/ 2010)

Eu estava no banho. Ao sair, corpo pingando, costas muito molhadas, ela me diz:
— Acabou de dar no jornal. Aquele diretor, daquele filme, está vendendo a mulher. São apenas 2 milhões.
— Dólares ou reais?
— Libras.
— Uau, isso equivale a muito dinheiro. Paga-se a quem?
— Como assim, a ele, é claro.
Devo dizer que o “é claro” dela, dito de canto de boca, me excitava. Corpo molhado, toalha caindo, outras partes subindo...
— Excentricidades. No mundo deles é permitido, eu acho.
Acredito que meu “eu acho!” sempre a irrita.
— No nosso também é.
Agora, o dito no canto da boca era uma ironia. Isso também me irritava.
As coisas começaram a fazer movimento inverso. Umas a subir, outras a cair.
— Não acho que valha a pena, falei sutil.
— Peraí, não valho a pena?
— Eu disse que não vale a pena. Mas, tem sempre um doido disposto a comprar tudo, sempre tem.
— Quando eu me refiro a mim, não sou algo que um doido compra.
— Mas eu não me referi a você, em momento algum.
— O assunto era eu.
— Não, disse assustado, o assunto era a mulher dele, à venda.
— Você sempre se desvia quando se sente acuado, é digno de gente frouxa.
Definitivamente, agora não havia mais riso. Nem conversa. Revidar?
— Meu amor, eu não te venderia. Desfrutar seu corpo é um prazer reservado a um único homem, por sorte, loteria divina, ou o que quer que seja, esse homem sou eu.
— Bom, das duas uma, ou o meu corpo não vale um mísero centavo no ebay, ou você está com medo de que eu ache alguém disposto a pagar mais que isso pra ter não apenas meu corpo. E desfrutar mais do que você consegue. Essa, assim como outras, doeu.
Ego ferido é o pior machucado depois de qualquer fratura exposta.
— Eu desfruto mais do que seu corpo. Desfruto sua companhia, isto é, quando não sou obrigado a ouvir futilidades, se é que você entende.
— Isso é patético.
— Eu também acho. Afinal, você é minha mulher, não está à venda.
— Não. O patético nunca foi vender ou não vender, lei do mercado, se é que você entende. O patético é a fuga que você acha que achou. Esquece. Vou assistir TV.
Primeiro: eu não sei de onde surgiu essa conversa. Ou pra onde ele foi e irá. Segundo: elas, as conversas, estavam se tornando cada vez mais estranhas, quem sabe bizarras, e isso é um indício. Melhor dizendo, indício é a pista deixada por um serial killer no locus do crime; indício é um cabelo louro encontrado no seu pescoço por uma namorada morena, ou mulata; indicio são restos de fogueira esquecidos pelos bandidos no começo de filmes de faroeste.
Essa conversa e todo o pacote de outras era um indicador. A) ela estava louca.  B) tudo indicava o fim.
Três dias depois nós terminamos. Três dias depois, o diretor vendeu a mulher. As duas cenas foram patéticas. Ela, com cara de lágrimas já secas, pra mim falsas, juntando calcinhas penduradas pela casa, resultado de sexo ardente ou da lavagem compulsiva. O diretor, na frente de inúmeras e alcoviteiras
câmeras entregando a mulher, ou amante, ou posse, com direito à coleira no pescoço, cravejada de pedras, e discurso inflamado. Quarto dia, a boa e velha solidão em casa. Pernas cansadas pra cima. O bom e velho sofá sustentando minha bunda e meu saco coçado. Eu em frente à TV.
No dia seguinte, happy hour com amigos. A vida de solteiro tem seus melindres, tem seus códigos mutantes. Você sai, desaprende e, quando volta,
percebe que tudo mudou. Inclusive o afeto que toda mulher tem por homens de aliança. Talvez porque eu já não usasse aliança. Aí vem a encruzilhada: não sei o que dói mais. O pé na bunda, a falta do compromisso no dedo, alimentando o desejo das feras insaciáveis por homens comprometidos, ou ela, ex-noiva, entrando no bar, com um moço bonitão, usando um espetacular colar com três voltas de pérolas. E um sorriso de cadela no rosto.

Paulo Sesar Pimentel
Todos os direitos reservados ao autor.

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