Santiago Vilela Marques [Professor, Contista, Escritor e Poeta Brasileiro]
Seus pais nunca gostaram muito da metrópole e viram, à época, a oportunidade de reconstruir a vida num lugar mais semelhante ao de suas origens (eles são do interior paulista). Por isso, sou muito mato-grossense, pois toda minha identidade antropológica, que se elabora a partir da pré-adolescência, foi moldada pela cultura e pela geografia local.
Embora eu tenha voltado a São Paulo, mais tarde, para estudar, trabalhar e casar, nunca me identifiquei totalmente com a vida na metrópole.
"Se não sou totalmente mato-grossense, não posso igualmente afirmar que seja paulistano.
Uma grata surpresa para a literatura brasileira produzida
Além de contista, Santiago vilela Marques é poeta.
Três Tigres Trêfegos (2010), publicado em coautoria com os poetas Juliana Roriz Aarestrup e Henrique Roriz Aarestrup Alves, seus poemas afirmam mais incisivamente a temática social presente desde a primeira publicação, principalmente na preocupação com a atividade exploradora que sempre caracterizou nosso processo civilizatório e colonizador.
Trabalhos publicados e inéditos podem ser encontrados no endereço eletrônico: Poacatu
Conto de Santiago Vilela Marques
CENTAUROS
Isso é, porém, coisas da teologia. E esta história não tem teólogos. Tem um povinho que conhece de teologia só as rezas de santos e as mandingas de espantar as artes do capeta. Essas rezas que iniciam prontamente, quando reconhecem o rosto do cujo numa artimanha de arrebanhar as almas que nosso senhor perdeu no jogo eterno.
E andam viciados os dados do além. Ou não se viam tantos ganhos da outra parte. Aquela contra quem os espíritos torcem, mas em quem os corpos apostam, que nunca vão de acordo os dois neste cassino planetário. Sempre num jogo duplo cada homem, desespero dessa raça de andróginos caídos.
É isso que o povo comenta com sua trovejante vox dei de teólogo amador. Como foi também ele que atribuiu ao tinhoso o nascimento de Manipo. Ou Manuel Epaminondas, como foi solenemente chamado pelo sacerdote da santa igreja católica, no sagrado rito de exorcizar, pelo batismo, os demônios das criancinhas que vêm ao mundo tão pagãs.
Quando Manipo forçou-se ventre abaixo da jovem mãe agonizante com o primeiro parto, ouviu-se terrível relincho atravessando as porteiras da fazenda e estremecendo os peões mais intrépidos em suas redes de descansar a poeira. Gelou o pai, o caseiro da fazenda e os empregados que dividiam um cigarro de palha na espera do natalício. Tramou-se a lenda. E, enquanto, dentro, o pequeno era envolvido em panos que o protegessem da frialdade noturna que assusta deste lado da vida, cá fora já teciam sobre ele outra tapeçaria, tear ligeiro e criativo que sempre foi a língua dos homens.
Mas o pai, testemunha experiente de outros partos – não de sua lavra, que a história ainda não trata de traições e adultérios, chegaremos lá –, em vez de correr ao quarto e à cama que lhe presenteava o filho, saiu porta da casa afora e mergulhou porta do estábulo adentro: a estimada égua Estrela acabava também de parir seu primeiro potro. Sem plateia. Sem bacias ou toalhas. Na assistência pura da Providência, mestra insuperável de todas as parteiras.
Não faltou quem observasse a menor preocupação do pai com a criança do que com o potro, e não se sabe a que deus ou por que graça foi aquela vela acesa no oratório. Alguns até o defenderam, dizendo que, para um boiadeiro, tudo é filho, alimária e gente humana. Na sua bonomia inocente, esses ditos acabaram servindo de instrumento inconsciente ao embaralhamento dos fatos. Pois, na lógica das palavras, a intenção é só um dialeto, que cada um entende conforme os vícios do ouvido. Gente e bicho se confundiram, então, e a bondade ou a maldade das conversas só serviu para variar as versões da história malfadada de um menino-cavalo nascido do pecado ou da divindade dos pais, que eles sempre são divinos ou perversos. Isto, este povo, que além de teólogo é sublimamente psicólogo, já sabia antes de Freud.
Conta, uma versão, que menino e cavalo nasceram gêmeos. E os livros de genética poderiam ressalvar que não eram certamente univitelinos. Mas ao povo não ocorreu esta observação, pois a genética é uma ciência nova nestas bandas. Outras narrativas acorriam na prática, internacionalmente condenável por deselegância, de ofender a mãe. Acusavam a pobre genitora de fazer “sujeira” com os cavalos da estância, ora tão limpos e tão asseados.
Aos folcloristas, podemos apontar uma variação deste motivo: a acusação do pai, que se teria aliviado na dileta égua Estrela, esta bem menos ofensiva do que as melindrosas referências à maternidade. Todo mundo sabe que ultrajar o macho dos genitores nunca gerou duelos memoráveis. Até os príncipes dinamarqueses se incomodam menos com o homicídio do pai do que com a usurpação do leito materno.
A diversidade das manifestações poéticas populares aumentava, assim, dia a dia, alimentada com novas notícias. Como a da amamentação dos recém-nascidos, pois, com poucas semanas de vida e lenda, já o pequeno Manipo ficava sem o leite da mãe, inexperiente ainda esta em produzir, do próprio corpo, a nutrição da cria. Sorte a égua Estrela poder fartar ao potro e ainda servir de ama-de-leite. Bicho já nasce experiente. A gente ainda é meio primitiva.
Crescidos os dois na mesma teta, não era de se esperar que se irmanassem, como mandam as boas virtudes entre filhos de ventre e de criação? Assim lançaram-se na vida, Manipo e o potro, andando sempre
Para não ficarmos sem a nossa, acompanhemos os dois, que o povo quer seja um, que o trivial pode revelar surpresas a olhos pacientes. Veremos Manipo cultivar, mais tarde, além do amigo equino, outra feroz amizade na música, dedilhando uma viola herdada de um vaqueiro do pai. Vai tornar-se destro nas modas como nas cavalgadas e encantar mais uma vez o povo. Que agora lhe vai esquecendo as origens demoníacas, que a massa tudo perdoa a quem a diverte e só despedaça Orfeu quando o mote falha.
Já as mulheres... Essas têm facas nos olhos e não se podem esquivar ao esquartejamento de um belo moço armado de poesia. Zefa Pia usou bem os seus, na festa do Divino e da santinha sua padroeira. E esquadrinhou, na quermesse, o moço bom de viola. E o cavalo no vigor do amor de bicho. Só ele, Manipo, não pôde usar os seus. Foram apenas dois, os olhos que deus cristão permitiu aos homens. Se fosse grego, poderia ter nascido Argos e ver mais do que podia a humana condição. Homem que era, ainda que nascido de cavalo, os olhos de Manipo já tinham miragens postas. Um estava na viola. Outro no potro de criação.
Mulher ultrajada, Zefa Pia pensou logo num amante para fazer ciúme. Arrumou casamento com outro. Nas exigências da festa, fez questão de animar-se o baile com a viola do homem-cavalo.
Narradores antigos diriam que nunca se viu tanta comida e bebida juntas. Tanta música bem arranjada. Tantos e tão belos vestidos de flores e estrelas, lá nas festas deles e de suas loas. Eu posso dizer que se viu, sim, no casamento bem negociado de Zefa Pia. O noivo matou cinco bois. Cinco pares de chifres imolados aos dois grandes deuses da festa. Um, a noiva, nuvem de luz bailarina, sedutora, ainda que de ouro no dedo. Outro... o violeiro, animador das valsas e das danças de cadeiras, onde sempre triunfava, sozinha, a própria noiva em seu trono, à espera de um príncipe. E, obviamente nesta história, de seu cavalo alazão.
O vinho, este universal provedor de olhos depois dos gregos, acabou, ao fim da festa, por doar suas muitas córneas ao cego Manipo. Os dotes de Zefa Pia se transfiguraram. Abriu-se o terceiro olho do herói. Uma visão luminosa e transcendental arrebatou-lhe o espírito. Budicamente apaixonado, ele saiu de sua posição de lótus no canto da orquestra. Propôs um brinde que soou acintoso aos ouvidos do povo, que, esquecemos de dizer, estava presente à festa, pois não perdia um passo, que dirá uma apresentação, do violeiro-cavalo.
– À bela Zefa, alma prisioneira num corpo de pássaro!
A bela Zefa entendeu o brinde. Sorveu de um gole o vinho vermelho da taça. Estendeu a mão ao cantor. E o cavalo arrastou-os em asas velozes, enquanto, com a noite, adensava-se a neblina, e o povo distraía o noivo com novas conjeturas sobre as armadilhas do demo.
Teriam vivido felizes para sempre, se fosse esta uma história de fadas. Mas fadas não entraram nela até este ponto e duvido que ainda aqui pousem suas asas, agora que a fábula descamba para o dramalhão. Fadas são criaturas de bom gosto e detestam tragédias baratas.
Na primeira noite de Manipo e Zefa Pia, os noivos já não viram as fadas, que se recolheram depois da festa, como todo conviva bem nutrido. Que isso de tocar o casamento é coisa, agora, para mulher e marido, em que não se mete a colher, guardada sempre depois do último pedaço de bolo confeitado.
Foram sozinhos, fugidos, os dois jovens casados. Agora Zefa Pia montada, pernas abertas. O marido atrás, no caminhar curto de quem se desajeita em dois pés. Apenas sob a bênção das nuvens, que chovem sobre todos, esposos ou amásios, pois é no auxílio delas que se criam, parem e nutrem os projetos de amores. Refugiaram-se na estância de parentes de Manipo. Longe do lugar do crime e dos olhos policiais do noivo traído e da fome detetivesca do povo.
Arranjaram um casebre só para os dois. E um rancho para o alazão. Mas poucas estrelas viu Zefa Pia, na sua primeira noite. Aquele corpo de homem tão leve sobre o seu! De pelo, só a barba rala e tufos esparsos nos peitos e braços. Mais espessos entre as virilhas, que aí, faltarem, só nos anjos de capelas, e Zefa Pia não gosta de anjos por maridos. Dizem que eles não têm o necessário para o cumprimento do estipulado.
Manipo tinha, e até de fazer inveja a homens, que dirá a anjos. Mas amou Zefa Pia como isto que era: só um homem. Mentiram as lendas? Nunca! As lendas sempre dizem a verdade. Desde que não lhes façamos as perguntas erradas.
Zefa Pia procurou outras respostas. Observava o sono do amante. Iluminado de luar, parecia mais feroz. As sobrancelhas engrossadas pela sombra. A pele acinzentada e endurecida pelo cansaço feliz. Por um momento parecia-lhe vir daqueles lábios estreitos e brancos o rechinado. Daquele nariz largo e férreo o sopro equino na noite. Mas era no estábulo o relinchar do cavalo acordado. Como um chamado, morno e sussurrante, de apaixonado em batentes de janela virgem.
Esperou.
Mas o marido ressonava como um homem. O que nunca deixara de ser, desde o dia do casamento, e já lá vão dois meses de fuga. Dois pés grandes de homem. Duas manoplas de homem. Barba e ombros rijos de homem, acostumados ao campo. Língua muda de homem. Sexo de homem.
Zefa Pia observou toda a fragilidade disfarçada
Dois meses. E todas as noites ela aguardou a transformação. O coração espancando as orelhas, enquanto ouvia o rapaz desencilhar o cavalo no estábulo. Depois, outros sons encantavam-na. Estranhos e mágicos na primeira semana. Mas, aos poucos, adivinhados e classificados. A sola das botas de Manipo. O patear dos cascos do cavalo. O derrame de ração no cocho. O tilintar do trinco na porteira. Então surgia no quarto o amante. Tão homem como o vira o dia todo e o deixara, antes de vir ao quarto, preparar-se para o encontro.
Pelo terceiro mês, a mulher esperou o sono do companheiro, depois do amor que outros narradores chamariam “animal”. Mas este tem de ser fiel a Zefa Pia, que jamais permitiria o epíteto a embate tão humano. Com a sede das carnes ainda ardente, a pele pouco saciada, deixou a cama, o quarto, a casa, tomou caminho do estábulo, onde ouvia chamarem-lhe o nome: “Pi-i-a... Pi-i-a...”.
Uma névoa rala começava a se adensar e esvoaçava nas revoluções da camisola da moça, que flutuava na espuma branca. No alto, o Cruzeiro do Sul reinava sobre a lua nova.
Depois de atravessar a porta, Zefa Pia puxou-a sobre si, fazendo a noite mais escura no interior do galpão. A brisa fresca da noite não soprava ali. Só um hálito morno fazia voltas no ar negro. Um cheiro forte de grama pisada evocava planícies largas e sombras protetoras.
Dormiu sobre a palha, abrindo-se para as docilidades da natureza que invadia seu novo ser. Retornou antes do sol, antes da primeira claridade anunciar o dia a Manipo. Trouxe para a cama um perfume bom de mato, orvalho e pelo.
Este trabalhava, caçava, era bom de briga e cuidava dela quando adoecia de saudade ou outra enfermidade de mulher. Comprou até uma espingarda nova para defendê-la, se acaso o traído viesse exigir o sangue da honra. Insaciável, Zefa Pia consumia tudo. O trabalho, a caça, os cuidados, na sede de alguma coisa que nunca atravessava a porta da casa adentro. Todo dia, as mãos de Manipo vazias do que ela precisava e parecia tão próximo.
Na madrugada, ela então encontrava a parte oculta da vida, que tanto procurara, devorando em vão todo o resto sob a luz do sol.
Compraram móveis baratos, que venderam
– Isso aí vai ser gêmeos – dizia a vizinha parteira, no aguardo de um parto recorde. – E olha lá, que um par é pouco.
O sorriso de Zefa Pia respondia com esforço e disfarce. Manipo não sorria, ocupado nos cálculos de somar bocas e dividir miséria.
Finalmente, não houve mais o que vender. Doeu a Manipo concluir pela perda do cavalo. Passado a outras mãos, iria, ele, lá comer de outro, enquanto eles aqui poderiam comer do seu. Preocupava-se, Manipo, com a sorte da mulher e dos filhos a parir e alimentar. É assim com os homens, quando amam. Azar dos cavalos.
– Não! De jeito nenhum! – exasperou Zefa Pia. Não deixaria vender alguém que era como se da família.
Manipo puxou pela insistência e a razão. Baixo cacife, quando o adversário saca da manga a insistência e o choro, mão suprema e imbatível nessas rodadas de amantes. E nesse jogo não se apelava ao blefe. Sentia, Manipo, o desespero maior de perder a companheira, que o de perder o cavalo. Como deplorava, Zefa Pia, talvez o contrário.
– Vende a arma! Vende a viola! – apelou a mulher. – Não têm sangue, não sofrem... Mas o cavalo... Você venderia um irmão?
Zefa Pia estava no nono mês. Não convinha discutir e afligir suas emoções. Isso, até para um homem, cai-lhe na sensibilidade. Quem diz que não existe paternidade instintiva?
Foi, então, o rapaz, a pé, à cidade, em viagem que levaria um dia inteiro, costeando, na sacola, a viola e a espingarda. Decidira vendê-las em cidade maior, para tentar bom preço, apesar do risco: estava indo para o lugar de onde fugira com Zefa Pia. Pela primeira vez, depois que se esconderam.
Deixou selado o cavalo, no estábulo, pronto a conduzir Zefa Pia à fazenda vizinha da parteira, caso preferissem chegar os filhos na surpresa. Ficaram, pois, Zefa Pia e o cavalo. E assim estava bem para a mulher.
Manipo trotou estrada. Entrou na cidade a tempo de encontrar aberto o comércio e fazer negócio.
Tarde como era, dormiu à casa do comprador, que, vendo a necessidade do rapaz por trabalho e sabido da impossibilidade de retorno ao sem-luz dos caminhos noturnos, ofereceu-lhe um roçado no quintal a ser desempenhado na manhã do dia após. Manipo concordou no trabalho oferecido. Argumentou-se que Zefa Pia podia segurar ainda, um dia, as crianças na barriga, nessa de acharem, os homens, que no parto se dá como no amor: fechadas as pernas, nada entra, nada sai.
Adiada a viagem de volta, não viu erro em passar algumas horas a passear pelas ruas poeirentas e bares iluminados. Sentia, já, a saudade da viola. Mas sabia que sempre se achava quem emprestasse a sua, se o cantador provasse talento.
Os ouvidos o carregaram à rua das casas de dança e outros brinquedos adultos. Entrou na primeira cujas janelas concertavam e sinfonizavam música de cordas para o vício. Não demorou a estar com o instrumento entre os dedos, sob o aplauso dos camaradas e a cobiça das mulheres.
Entretanto, já um tentáculo do povo, que nunca dorme, ubíquo e onisciente, corria a sugerir, ao marido abandonado, o paradeiro do adúltero. Logo lhe reconhecera a arte da viola, como igual nunca tinha visto.
O afrontado desenfronhou-se da cama. Armou-se de couro, faca e revólver. Tanta espera acabava ali. Calçou as botas pesadas, com as quais calou toda a freguesia, ao pisá-las sonoramente na entrada da casa de alegria
Disse primeiro, Manipo, que não queria brigar. Que deixassem os desafetos no passado, lugar tão confortável para eles. Mas o outro não queria compreender as boas razões do pacifismo. Chamou o rival à largueza da rua, onde poderiam enfrentar-se sem pôr em risco a plateia. E com tão justa sabedoria a plateia concordou sobremaneira.
Foram.
E foi também a plateia, que prefere o espetáculo à sensaboria da segurança.
Igualmente desancado pela batalha, Manipo também foi socorrido. Teve, por isso, de adiar mais um dia o retorno à fazenda. E desfazer o negócio do roçado. Mais uma noite ele pediu à senhora do bom parto. Que cruzasse as pernas para segurar os filhos
Dia feito, pé no eito, disse o povo, que se apraz nas rimas. Com isso informa que, tão logo o sol apontou, Manipo aprumou o nariz rumo ao local onde sua Zefa Pia, esposa e mãe agora sem pecado, perdoada do adultério pelo próprio ex-marido, ficaria muito feliz de saber da bravura de seu homem e protetor. Um pé. Depois o outro. Foi Manipo contando os metros comidos no abrir e fechar das pernas. Que as de Zefa Pia ainda estejam fechadas! Consinta Deus ou quem mais puder!
Chegou em casa quando a noite já cortejava o dia, seduzia as luzes com sua mansidão velhaca de prestidigitadora. O sol caía hipnotizado e sonolento atrás de um outeiro. As primeiras estrelas espiavam com olhinhos brilhantes se podiam passear sem o risco de queimar-se na claridade.
Manipo gritou alegremente para a mulher. Correu para a casa. Mas nada encontrou. Da janela, observou a porta do estábulo aberta. Adivinhou: sou pai!
Depressa se adiantou à casa da vizinha parteira. Poucos minutos para uma corrida. Mesmo de quem passou a madrugada anterior batendo e apanhando. Especialmente se move o corpo a ansiedade e o contentamento de ver, pela primeira vez, o primeiro filho.
Entretanto.
A parteira o recebeu admirada. Nada de Zefa Pia ainda. E estava à hora de expulsar aquelas crianças. Que eram gêmeas, ele iria ver como ela estava certa!
Manipo preocupou-se. Recordou a porta do estábulo corrida. “Ela não conseguiu montar”, pensou. “Está a sofrer as dores, sozinha, no estábulo.”
Maior pressa o trouxe de volta do que o levou à casa da parteira. Mas não nos enganemos. Maior também pareceu a estrada que o trazia do que a que o levara. Coberta de obstáculos, uns pensamentos ruins e pedregosos, nos quais a mente preocupada de Manipo ia tropeçando. Ele nada ouvia. Será que a mulher morrera no parto? Mas, se morrera, foi com ela o filho. Ou os filhos, no dizer da parteira, pois nada de choro também.
Diante da porta silenciosa do estábulo, ele estancou. Temia de olhar dentro. Demorou alguns minutos. Os pés afundados e imóveis na indecisão e no terror. Então ouviu o choro. Ou teria sido um relincho? O barulho o acalmou. Reconheceu que não era o relincho de seu alazão. Mais fraco e entrecortado, só podia ser o balbucio de uma criança.
Lembrou que estava sem velas, e a noite agora já estava toda no mundo. Acendeu o isqueiro de bolso. Com um fio de luz, entranhou-se no breu do galpão. A vista procurou, assustada, alguma forma na fraca luminosidade que a chama lançava nas paredes. Reparou que o cavalo não repousava na baia. Fora arrancado ou fugira. A porteira estava descerrada.
De novo ouviu o balido. Ou choro. Ou relincho. Vinha da parede lateral. De onde se amontoava a palha tantas vezes oferecida, pela noite, aos sonhos de Zefa Pia.
Manipo iluminou aquele lado. Viu uma sombra mover-se. Chegou mais perto. Até poder divisar manchas vermelhas na palha. Zefa Pia não estava ali. Havia um corpo, sim. Mas era muito menor. Nem Zefa Pia nem cavalo. Aonde teria ido a mulher montada? Se não podia nem andar, com aquela barriga descomunal?
Aproximou-se. Chegou perto o lume do isqueiro. E avistou. Esparramado sobre panos manchados de sangue como o capim seco, tentando erguer-se sobre os pés finos e cambeteantes. O mais formoso potro que Manipo já vira parir. Uma versão infantil do belo cavalo que Zefa Pia roubara da estrebaria.
Nunca mais foram vistos. Nem o alazão, nem Zefa Pia.
Mas o povo, terceira personagem de nosso conto, vai vivendo e falando. Onde não sabe, vai pontilhando episódios imaginados. A história sempre se encomprida, se não pomos nela um ponto. E o povo só conhece vírgulas. Segue, pois. Assim. Pespegando novas vírgulas a cada versão recontada. Zefa Pia cresce. Vira amazona. Vingadora. Amante noturna. Súcubo de outros homens e animais.
Dizem, alguns – aqueles mais afeitos ao realismo literário –, que casou outra vez. Fez-se viúva herdeira de um haras, que na linguagem viperina traduz o povo por harém.
Manipo teria sido mais feliz? Pouco sobreviveu de sua sorte na memória do povo. Mas inventaram que foi bom pai para o novo potro, depois de ser irmão do velho.
“Como o diabo faz e goza”, remata o povo. Douto e filósofo.
Um comentário
Muita saudade dele... Meu influenciador, sempre imaginei que ele não era humano, não podia ser... Algum anjo de Deus que agora voltou pra contar ao Criador suas experiências... O que será que você tá falando com Deus, meu professor?
Estaria discutindo mitologia grega e os sofrimentos do jovem Werther (uma única vez em o vimos triste... e eu peguei-lhe muito no pé por causa do Werther ☺ )?
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