Certo dia alguém pára e pergunta: pra onde esse trem tá me levando?
O movimento pode ser lento ou fulminante. Dependendo da resposta, não
tem jeito. A viagem muda a rota e o sentido agora é outro. Não importa
se você pulou ou foi jogado para fora do trem, a palavra de ordem é
caminhar.
Separar é mais ou menos assim. A primeira dica e a mais importante é
juntar a bagagem e procurar um lugar para deixá-la em segurança. Depois
você busca. Peso agora, só o do próprio corpo. Fuja da tentação de
descobrir os porquês. Você vai ficar parado na plataforma e a resposta
só chegará na primavera seguinte. Tire os sapatos e pise na terra. Pode
não parecer, mas ela nunca foi tão firme.
Lei de sobrevivência na selva: olhe para o céu. Se chover, como você se
vira? Não fique parado. Vá construir a sua própria cabana. Antes,
recomendo passar num médico mais próximo, essa coisa de heroísmo é só em
filme americano. Se tiver alguma coisa sangrando, ele faz um curativo
rápido para estancar o sangue. A dor não mata se você tiver mais o que
fazer. Contenha a mania de coçar suas feridas. Dê tempo a elas.
Cabanas seguras são feitas de tijolos.
Você vai suar ao construir tudo de novo. Sugiro cuidado com as inovações
arquitetônicas, comece pelo básico: quatro paredes retas e um teto.
Você estará protegido da chuva e isso é tudo o que importa agora. Qual o
tipo de janela que você mais gosta? Com ou sem grades? Essas são
questões muito mais importantes do que as outras que entram na sua
cabeça no meio da noite. Mas ainda não pegue as bagagens. Elas estão
cheias de mágoa ou culpa, pra quê abrí-las agora?
Toda casa precisa de uma cama, uma pia, uma mesa e um fogão. Leva tempo,
mas um dia, com a cabana mais ou menos montada, você acorda e descobre
que nada melhor do que uma flor em cima da mesa. Repito: leva um baita
tempo. Mas, quando rolar: é hora de caminhar pela floresta! Perder-se
nas árvores. Comer uma fruta devagarinho. Acenar para os vizinhos. Tomar
uma chuva à tarde. Adormecer sem pressa na grama.
Supere os contos de fada.
E confesse: não seria bacana cruzar, rapidinho, com um lobo ou uma loba
perdidos por aí? Só cuidado, não vai praticar a caça inveterada e sair
dando tiros a esmo. Seus tiros valem ouro. E lobos ou lobas farejam, nem
precisa procurar. Também não vai tentar domesticar o bicho e enfiar na
sua cabana... Tá cedo! E existem gatos reais para isso.
Aos poucos, você perceberá que o melhor das cabanas é que elas nunca
estão prontas. E quando ficar muito pesado o silêncio, pegue a
estradinha de terra, logo ali, e vá até a taberna mais próxima. A gente
precisa do barulho dos outros para perder medo do próprio silêncio.
Chame os amigos e se não os tiver faça novos. Nada precisa ser tão
profundo e é tão bom falar bobagem madrugada afora.
Caso alguém perguntar quando você vai voltar para o trem, diga que está
passando umas férias. Ninguém tem o direito de se meter na sua vida.
A vida em sociedade é uma bela piada.
Verdade mais do que comprovada é que quando você se separa, as pessoas
te olham diferente. Tem gente que vai te ver como uma ameaça concreta e
você nunca vai saber direito a quê. Outros vão confessar todos os seus
pecados, como se você, a partir de agora, compreendesse tudo. Repito:
tudo. Não vale a pena se irritar, o jeito é ser mais tolerante. E, cá
prá nós, tem algo de cômico nisso.
O fato é que um dia chega a vontade de voltar para a cabana e você se
pega feliz por estar ali dentro. Não sei quantas estações isso leva, mas
garanto que acontece. Nesse momento, bate na porta o bom silêncio. Ele
tem densidade e aquece. É o passo para começar a ser mais generoso
consigo mesmo. Um prato recolhido na pia, antes que você perceba. Uma
casa arrumada para chegar tranquilo do trabalho. Um compromisso recusado
pelo prazer de ficar na santa paz de deus.
Talvez aí, seja o momento de ir até aquele lugar onde você largou a sua bagagem.
Como ela estará cheia de poeira, recomendo abrí-la sobre a mesa, com um
paninho e uma garrafa de vinho à tiracolo. Talvez você se surpreenda com
o peso: leve ou pesada não importa. Você vai descobrir que muitos
objetos e roupas que guardava ali dentro não te servem mais. E o que
serve, provavelmente, vai te acompanhar por um bom tempo ainda. É a tua
parte verdadeira na divisão dos bens.
Agora você começa a se separar de verdade. Sim, está tudo errado na
lei... A gente não se separa só de alguém. A gente se separa daquilo que
fomos com alguém um dia. Esse é o divórcio derradeiro. Por isso é
díficil. Por isso não importa se você foi jogado ou se saltou do trem.
Separar é um luto delicado que leva um tempo danado...
Até que um dia alguém bate na porta e te chama para ir além dos atalhos.
Mas isso é outro texto... Caminhar se faz parágrafo por parágrafo.
Voilá: a mala está sobre a mesa e os ritos que te aguardam são vários.
Há quem queime camisas, outros enterram chinelas. É possível também
botar tudo num saco e passar adiante. Eu curto esta opção, é quase uma
doação de órgãos, um deixar a vida reciclar, o tal "nada se perde, tudo
se transforma".
O que a gente não pode é violentar o tempo. Tem de apalpar cada peça de
roupa ou objeto e decidir o que fica e o que vai. Pode apostar, o que
ficar é coisa tua, ninguém tira, independe das estações. Talvez, nesse
processo, você responda às questões que te atormentaram quando desceu
daquele trem... É muito provável que não. Mas, nessa altura do
campeonato, as coisas simplesmente já são como são.
Tatiana Carlotti - Balzaquiana
convicta e amante das letras. Pulsa no Centro de São Paulo ao lado do Balzac,
seu gato. Acredita na força da delicadeza e na densidade da leveza. Ama
bastante. Ainda sonha... Site: SobremargenS.
Todos os direitos autorais reservados a autora.
6 comentários
É a vida de encontros e desencontros, quem entra quem fica e tudo passa .Temos a capacidade de reconstruir para recomeçar e de alguma maneira o que ficou ninguém tira , por mais pesada que seja a dor , temos a escolha de sermos felizes ou viver no passado alimentando as feridas, um texto maravilhoso Tatiana,Parabéns!!
Tatiana, teu texto é de extremo bom gosto e sempre atual. Essas mudanças de estações que a vida nos trás podem ser decisivas. Dependendo das escolhas e postura diante dos fatos, toda a tua vida futura pode ser definida. Adorei a abordagem. Meus sinceros parabéns.
Queridas Ivana e Gil, obrigada pela leitura. E vamosquevamos! Beijo, Tati
SEM PALAVRAS!
Aqui ainda em plena epifania com este texto! Perfeito! Já falei eu adoro!
Obrigada Mirian! Beijo!
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