“Fahrenheit 451”, do escritor
estadunidense, recém-falecido, Ray Bradbury, publicado em 1953 (e, no ano de
1966, transposto para o cinema pela ótica do cineasta francês François Truffaut),
é uma visão distópica do futuro. Esse clássico da ficção-científica traz um
mundo no qual os livros são objetos de perseguição, alvos da sanha compulsiva
de um Estado de negar ao pensamento subsídios para pontos de partida de uma
reflexão que pudesse revelar um horizonte distante da letargia, do consumismo e
da falta de paixão vivenciada naquele cotidiano. São, justamente, isso que os
aparelhos televisores embutidos nas quatro paredes da sala de estar exibem o
dia todo: códigos para letargia que drenam a paixão. Em que essa civilização se
torna especialista é na morte do espanto, leitmotiv da filosofia de Platão e início do
desejo de conhecer o funcionamento, a ordenação e as possibilidades de mudar o
mundo. Logo, o consumo em “Fahrenheit 451” prescinde do alvoroço da paixão. É
algo instituído, institucionalizado, uma “vontade mecânica”.
Pensando, agora, na distopia
“1984” de George Orwell, vêm à mente a doutrinação “Dois minutos de ódio”,
quando os membros do partido são estimulados a cultivar a ira em nome do Estado
contra os opositores desse mesmo Estado totalitário. Nessa obra-prima do
britânico Orwell, que ganhou a luz em 1949, a paixão está presente para
destilar o ódio capaz de sustentar o monopólio ideológico do Estado. Não há
espaço para o exercício livre do pensamento. Ao elucubrarmos sobre essas
distopias, o mundo atual cravejado de imagens e que tem no consumo de
mercadorias e serviços o principal promotor de status, aparece como uma
disputa ferrenha entre letargia e paixão. Segundo o sociólogo polonês Zygmunt
Bauman, o mundo contemporâneo é marcado pela incerteza e pela insegurança, no
qual o consumo transformado em compulsão acaba por se transmutar em vício para
ser o “campo” de batalha contra todos os sentimentos de angústia e constrangimentos
da atualidade. Contudo, tal estratégia intensifica tais sentimentos, deixando o
cenário mais sombrio ainda. Uma sociedade de consumidores se eleva em busca da
satisfação prometida, mas nunca alcançada. Os milhares de desejos tornados
necessidade pelas imagens vendidas pela publicidade e dimensionadas pelas
mídias precisam da paixão, que, no entanto, esvai-se em letargia. Portanto, o
consumo proporciona o jogo de despertar e apagar da paixão. Paixão que sustenta
o desejo de beber cerveja (que opta pela beleza dos modelos e pela
descontração, deixando centenas de ébrios contumazes fora de suas propagandas
por estarem distante dos padrões de mercado do ideal de perfeição estética), de
comprar um carro e de assistir lutas do UFC. Tais lutas mostram a violência
rápida e extrema transformada em espetáculo popular. Por isso, muitos os
consideram como “gladiadores” do novo milênio (um dos fenômenos pós-moderno é o
de tornar termos depreciativos, sórdidos ou vinculados à barbárie algo
palatável e embalado pelo consumo intelectual de conceitos), como se os
gladiadores da Roma Antiga não fossem escravos que matavam em nome da própria
sobrevivência, para fazer a alegria de um soberano sanguinário e de uma
população imersa num belicismo pela glória do Império. Porém, esses espetáculos
de violência contemporânea não levam à catarse dos sofrimentos diários (com
alguma intenção que seja pedagógica), na pior das hipóteses, são uma adição a
mais nas hipocrisias cotidianas que não nos purifica nem nos alivia da tensão terrível
de existir. Parece mais como um passeio no qual o brutal se torna vitória e
efeito da perfeição (mesmo que seja sem uma técnica apurada), e a felicidade
tão efêmera que sua simples sensação atrai automaticamente a frustração pela
nossa fraqueza. As violências cotidianas recrudescem pelas imagens que nos
encantam, aterrorizam ou alimentam nossas indiferenças. No dia-a-dia, a paixão
e a letargia se enfrentam por cada espaço nos corações e mentes.
No filme estadunidense “Garotas
Malvadas” (Pretty Persuasion, 2005), uma comédia de humor negro dirigida
por Marcos Siega, temos a personagem Kimberley Joyce, uma
rica e mimada patricinha de Beverly Hills, cujas artimanhas nefastas carregam
as marcas de uma sociedade que produz, em alta escala, imagens brutalizantes, e
por consequência, nega-se em lidar com os resultados gerados; que, na verdade,
significam a desumanização em série por deixar que cada um arque com aquilo que
fora ensinado a desejar. Kimberley é uma adolescente de quinze anos sexualmente
promíscua; que assiste às filmes pornográficos; que tem um pai antissemita,
imoral e corrupto; cujo irmão foi morto na guerra do Iraque (uma guerra
justificada pelo discurso de democracia e liberdade, que, na realidade, não
encontrou uma causa justa para se amparar e acumulou como espólios mortes e
mais mortes); e tão inteligente que é capaz de manipular todos à sua volta.
Porém, Kimberley é o retrato de uma paixão (o sonho de ser atriz, celebridade)
que não se relaciona com o afeto pelo próximo. O consumo aqui se traduz na
avidez pela incorporação de milhares de imagens que vendem a violência, a
banalidade, o prazer sem sentimentos, o status
quo. Kimberley, parada diante da TV, procura compreender um jovem que
invadiu uma escola e assassinou estudantes e professores; por outro, uma de
suas amigas, uma muçulmana (que estabelece o conflito entre uma cultura
permissiva e outra de severos códigos morais) que não consegue lidar com o
resultado de um forjado caso de assédio sexual (arquitetado por Kimberley, em
decorrência do seu desejo pela fama), e que envergonhada por isso toma uma
decisão drástica, é vista pela garota como um efeito colateral da batalha. A
mesma justificativa que lhe dão para a morte do irmão no Iraque. Kimberley é o
substrato “sutil” de uma amoralidade que está na raiz de um conservadorismo que
abraça a hipocrisia para se proteger do próprio lixo que produz diariamente. É
como se fosse uma utopia de valores que se desvelasse como uma distopia, que
escancara todas as mentiras que as sustentava. A indiferença é o seu preço, a
paixão seu alimento e a letargia seu fim último. Se hoje as imagens que
irradiam a vontade da conquista da ascensão social pelo consumo precisam da
paixão, amanhã a letargia tornará a aquisição de mercadorias e a necessidade de
obtenção de produtos descartáveis meros gestos mecânicos.
No futuro distópico criado por
Bradbury, a observação de Zygmunt Bauman de que a produção ainda nos ligava ao
próximo, mas que o consumo como uma atividade solitária (mesmo que estejamos
acompanhados) gera a dissociação com quaisquer laços entre os consumidores
torna evidente que as imagens podem abdicar da paixão para fazer triunfar a
vontade dos agentes do capital pelo consumo total. Talvez a sociedade vindoura
não produza Kimberley aos montes como faz atualmente. Elas (e eles) estarão
presas na letargia de uma civilização que tornará o conhecimento persona non grata, para evitar,
desse modo, qualquer deciframento de discursos e de codificação de imagens que
conduzam à liberdade de pensamento.
Wuldson Marcelo, corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979, em
Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação em
Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos e autor de dois livros de
contos que estão entre o prelo e o limbo, “Obscuro-shi” e “Subterfúgios Urbanos”.
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