“O mundo é dos que sentem” [ Sanny Lisboa]
Faço aqui uma apologia a Fernando Pessoa, em trecho de uma de suas obras, legado que este grande escritor da Língua Portuguesa deixou ao mundo.Ele escreveu: “O mundo é dos que não sentem”. Vou explicar meu ponto de vista diante dessa afirmação. Exceto meus amigos e parentes que já sabem o que passei nesses últimos nove meses, é preciso compartilhar com os caros leitores que neste período passei por uma grande transformação interior, devido ao aparecimento de um câncer de mama, diagnosticado em outubro de 2011.
De lá pra cá, travei uma luta ferrenha pela vida. E, aos poucos, em meio ao sofrimento (dor física e emocional), descobri as “várias faces” da sensibilidade humana. Então, na minha pequenez literária, ouso dizer ao ilustre prosador do Modernismo que “O mundo é dos que sentem”.Digo isso porque, após essa experiência, acredito que o sentido da vida, tema debatido durante séculos por pensadores e que filósofos tentam desvendar, para mim agora se encontra guardado no coração dos sensíveis: aqueles seres que desfrutam da vida dando o melhor de si e recebendo dela o que há de melhor. Exemplos desse fato não me faltaram em momentos de dor.
Num deles, em um mesmo dia, constatei a disparidade da atitude de dois mastologistas ao lidar com uma paciente com diagnóstico de câncer. Nas poucas e indiferentes palavras do primeiro, que ao abrir o exame me deu o diagnóstico da neoplasia, encontrei o desespero diante desse experiente e renomado profissional de Cuiabá.
Extremamente “dono de si”, ele me fez perder o chão da maneira com que me tratou nesse momento tão delicado. Infelizmente, para profissionais com esse, na prática da arte da medicina, a afetividade e a sensibilidade não são exercitadas tal como foi assumido como compromisso diante do Juramento de Hipócrates.
Essa atitude insensível também reflete a irresponsabilidade a “autossuficiência” de um profissional que dias antes do diagnóstico do exame insistiu que o nódulo que eu apresentava não era nada grave e que podia ir embora tranquila para casa. Não fosse a insistência de uma amiga que me acompanhava durante a consulta, sairia do seu consultório sem o pedido de uma mamografia, que culminou em uma biópsia.
Felizmente, no mesmo instante desta dor, duas outras queridas amigas sensíveis e generosas, providenciaram uma consulta de última hora com um médico que além de técnicas e manobras terapêuticas, exerce a medicina com sensibilidade suficiente para “se colocar no lugar do outro”. Sabe compartilhar boa vontade, é aberto para ouvir e sábio até para dizer “nem tudo o que eu sei você precisa saber sobre seu problema”. Nesse momento que lhe enchi de perguntas sobre meu futuro.
O médico teve tempo e paciência para ouvir e sensibilidade para explicar exatamente o que um paciente neste estado precisa ouvir num momento crucial. Foi a partir daquela conversa, minutos antes de pensar que estava tudo perdido, que comecei a encontrar forças parar lutar.
Percebi que quando uma pessoa da família adoece, todos em sua volta adoecem juntos.
As diferenças, mágoas, ressentimentos, incompatibilidades ficaram para trás.
Compreendi que quando a sensibilidade se sobrepõe sobra só o essencial no coração.
Comprovei que em momentos como esse, os entes queridos vão além de suas capacidades.
Constatei que sentimentos, que talvez uma vida inteira não fosse o suficiente para serem manifestados, vêm à tona.
Por falta de uma irmã, os banhos dados por uma das cunhadas que me recebeu em sua casa depois da cirurgia, a companhia da outra que dormia comigo no hospital enquanto os efeitos da quimioterapia me fazia pensar que eu não aguentaria me fizeram entender o quanto perdemos tempo dando importância às diferenças e o quanto a vida é bela e sábia quando nos dá a oportunidade de aprender a ser humildes.
O colo e as lágrimas dos “homens da família”, como o marido, o pai e os irmãos, todos criados em famílias patriarcais, onde o machismo sempre encontrou brechas, colaboraram para que eu e eles entendêssemos que a amabilidade, a doçura e a ternura não têm sexo. E o sofrimento e a força de uma mãe diante da possibilidade de perder uma filha, me mostraram o mais alto grau de sensibilidade, aquele que faz nascer o desejo de alguém dar a própria vida por você.
A sensibilidade que despertou as atitudes de cada uma dessas pessoas me mostrou a concretude do amor. Talvez, não fosse essa enfermidade, nunca me sentiria tão amada assim por essas elas.
E os amigos? Ah os amigos... Estes foram a melhor parte da minha percepção desse “mundo sensível”. Se fosse contar o quanto foram solidários, o quanto foram dóceis, escreveria um livro. Mas já pedindo perdão aos que não cito, digo que na amiga de infância encontrei o carinho de irmã. Desde a primeira consulta à fase final do tratamento. Sua frase preferida me “segurou” em cada etapa do tratamento: “Vai passar!” E passou...
Li dia desses que uma pesquisa americana comprovou que ter amigos fortalece o sistema vascular. Nesses nove meses, meus amigos não só me fortaleceram, mas tomei emprestado deles seus próprios corações. Ao me ajudarem a viver essa dura realidade , tornaram os meus dias pesados mais leves com uma simples mensagem, com um telefonema, uma oração, um abraço, um olhar.
Dessa forma, os meus verdadeiros amigos “sentiram” comigo o desespero do diagnóstico do câncer, as dores da cirurgia, o mal-estar de cada sessão de quimioterapia, a rotina durante as sessões diárias de radioterapia, o alívio com o término do tratamento e, sobretudo, a esperança diária de superar.
Quero encorajar àquelas pessoas que se encontram com algum tipo de neoplasia: tenham fé, lutem, sejam guerreiros (as) nessa tarefa. Àqueles, que possuem familiares com a doença: sejam sensíveis, tolerantes, amáveis, respeitosos, pacientes e usem de palavras de fé e otimismo, sempre. Aos médicos: é preciso tirar essa blindagem de indiferença e insensibilidade no trato com os pacientes. Sejam sensíveis, lembrem-se que o fardo é pesadíssimo, e vocês são instrumentos para uma jornada que vai precisar de apoio, solidariedade e humanidade.
É com esses ingredientes que hoje eu posso dizer: neste “mundo dos que sentem” a sensibilidade de minha família, meus médicos e meus amigos me curam a cada dia.
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