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A Leveza Insustentável e a Beleza das Escolhas: Kundera Leitor de Nietzsche [Wuldson Marcelo]


A Leveza Insustentável e a Beleza das Escolhas: Kundera Leitor de Nietzsche

No início do seu romance “A insustentável leveza do ser” (1983), o tcheco Milan Kundera cita Nietzsche e a sua tese do eterno retorno. O eterno retorno carrega um peso inominável, pois se tudo se repete constantemente, a eternidade será um fardo inexplicável e constrangedor. Mas Nietzsche nos diz que apenas o efêmero é verdadeiro. Desse modo, qualquer evento aparecerá num umbral diferente dos acontecimentos de outrora: logo, os traumas ou as vitórias inscritas na história são destituídos de sua aparência, não são como as conhecemos, perdem a fugacidade que a delineariam como intocáveis.

Kundera, em “A insustentável leveza do ser”, nas personagens Tomas, Tereza, Sabina e Franz, perscruta um par de sentimentos contraditórios, de jogos de aparência e da disputa entre liberdade e conservadorismo moral. As provocações do escritor tcheco, na verdade, suas observações de cronista que buscam a justeza de seus apontamentos a cada escolha feita pelas personagens, esquadrinham as relações humanas nos âmbitos do amor, da sexualidade e da política. O eterno retorno apresenta o absurdo da vida. E Kundera desvela o absurdo e como a vida carrega a indefinição, fruto da incerteza e da insegurança denunciadas por Zygmunt Bauman, juntamente com a falta de garantias, como marcas da modernidade líquida, ou seja, do mundo contemporâneo. O absurdo está na invasão russa a Praga; preenche a escolha que deve ser forjada entre o amor e a carreira na relação Tomas-Tereza; e contém a vida de futilidades da esposa e da filha de Franz. Mas está, também, na incerteza de Tereza, na fria convicção de Tomas e na tenaz resistência de Sabina.

Bauman fala da vida contemporânea como uma vida fragmentada, e que ela por ser esparsa, sem elos que conectem as experiências, é vivida em episódios. A insegurança surge como um ponto de desequilíbrio que acaba por fragmentar a existência. E o amor, ou melhor, as relações amorosas são afetadas pelos estilhaços dos desatinos promovidos pela insegurança. No amor de Tereza e Tomas a insegurança mostra-se um componente irresistível, plantando a angústia, a desconfiança e a necessidade de tolher a independência num amor expressado em cada gesto, ou seja, a liberdade plena de Tomas significa a suspensão da certeza do amor. Como no sonho/pesadelo de Tereza em que Tomas com um revólver mata inúmeras mulheres que desfilam nuas em uma piscina e Tereza entre elas. Elas tornam-se todas iguais, nada as diferenciam para o amante ávido dos prazeres do sexo. O que oferecer a Tomas para que a veja como distinguível diante das outras? Insegurança e o desejo de surgir única perante os olhos de Tomas movem as escolhas de Tereza.

De Nietzsche há também o amor fati. Ou o amor ao destino. Tomas é um médico que consegue um emprego em Zurique. Tereza é fotógrafa. Porém, ela não se sente confortável na cidade suíça. Praga, apesar do horror da invasão russa, aparece-lhe atraente, uma fuga fundamental.  Tomas adaptou-se, obteve sucesso. No entanto, Tereza segue atormentada pelo medo de perder o amante. “Dizia a si mesma que, desde o começo, o encontro deles estava apoiado sobre um erro” (Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, Ed. Nova Fronteira, 1985, p. 80). Desde que se encontraram na Boêmia, e Tereza deixar tudo para trás para segui-lo até Praga, ela era acometida da insegurança que torna o amor refém do peso da dúvida contínua. Tereza volta a Praga, um tempo depois Tomas retorna a terra natal a procura dela. Depois dos inúmeros percalços (infidelidades, crise conjugal, os desmandos do regime comunista, o aparecimento do filho de Tomas), Tomas perde sua licença médica por entrar em atrito com os ideais do regime (basta uma pequena suspeita ou uma insignificante discordância para a existência modificar-se completamente quando o autoritarismo toma corpo na chefia de um Estado) e vai com Tereza para o interior viver como agricultor. Porém a reviravolta nessa existência de médico talentoso e bem-sucedido não configura o nascimento da amargura e nem a vitória do despotismo político sobre a liberdade. Tomas ao perceber que perder tudo significou encontrar a si mesmo, não tem o espírito alquebrado pelas circunstâncias impostas pela proibição e perseguição do regime. No fim, Tereza lhe diz, “Se tivéssemos ficado em Zurique, você estaria operando seus doentes”. Ao que Tomas responde, “E você estaria fotografando”. Tereza insiste em sua autorreprovação, “Não se pode comparar. Para você o trabalho era a coisa mais importante do mundo, quanto a mim, poderia fazer qualquer coisa, não me importaria. Não perdi nada. Você perdeu tudo”. Então, Tomas lança lhe a frase/pergunta que Tereza buscou ouvir por longo tempo e quando dita transmitiu a sinceridade ardorosamente esperada, “Tereza, você não notou que me sinto feliz aqui?”. Tereza, ainda ensaiando a possiblidade da sublevação da incerteza, diz “Sua missão era operar”. Ao que Tomas rebate, “Missão, Tereza, é uma palavra idiota. Eu não tenho missão. E é um alívio imenso perceber que somos livres, que não temos missão” (p.p. 313-314). Tomas inverteu a condenação de seus algozes, diz “sim” ao ostracismo profissional ao qual foi jogado. Emocionalmente, Tomas toma as rédeas da sua vida da mão do oponente e fulgura sóbrio, com força sobre aqueles que o lançaram censuras e interdições.

Ítalo Calvino, em uma de suas conferências “Seis propostas para o próximo milênio”, expõe a presença humana sob a égide do peso de viver. Tal peso acompanha todas as convenções sociais e as formas de opressão que sustentam o poder ou o domínio nas relações por parte de um dos parceiros sobre o outro. Nós procuramos fugir das variadas coerções que sofremos e imposições que nos direcionam.  Nossas escolhas buscam criar idiossincrasias para tornar o pesado leve, para transformar a responsabilidade de um fardo ou da perda (enfim, do sofrimento) razão de um viver que almeja a superação. E superar não é infligir a si próprio à aceitação de uma injustiça é retirar da injustiça à força do seu perpetrador convertendo-a em impulso para seguir em frente.

A leveza está na forma como o homem vive a vida. E Nietzsche, além da investida contra o peso no cotidiano, ataca a forma como a moral dispõe um peso ao conhecimento. A moral que cinge a liberdade e a experiência de um aprendizado que tudo quer conhecer. E Kundera percebe que a moral atira sobre a existência um peso terrível. A moral e suas constrições que ilibam a independência em nome de um pretenso conforto dos valores que moldaram a tradição. A leveza necessária rompe com a determinação de um mundo administrado.

Mas, ao retornar ao eterno retorno, o mais pesado dos fardos, verificamos a aparição de uma questão: se tudo se repetirá a possibilidade de que algo permaneça o mesmo é muito grande, então, a leveza insustentável surge, e a responsabilidade de aceitar ou não o fardo se apresenta, logo, mesmo diante do fortuito, do ocasional, a vida é uma escolha. Vida sem finalidade, mas com um sentido a ser construído. Essas ponderações cravejadas pela incerteza e pela insegurança que toma Tereza, e que, de um modo não evidente, contêm as convicções estruturadas pela indiferença e pela vontade de conhecer os recônditos insondáveis do prazer por Tomas, são superadas quando os amantes percebem a chegada da igualdade entre os sexos na relação (Tereza) e a leveza da liberdade nas próprias ações (Tomas).

E para concluir este texto de Milan Kundera como leitor de Nietzsche (esse não é o tema do artigo. Isso se for possível identificar algum), há a passagem em que Tereza teme pela sua cadela/filha Karenin, pois os russos procurando nos tchecos homens que pudessem liderar fomentam ódio: como a fé no comunismo estava esmorecida a solução foi alimentar o desejo dos que esperavam uma vingança contra a vida entendida como perversa, e o alvo encontrado foram os animais. Tereza se horrorizou, viveu um inferno interior, porque seu desejo de proteger Karenin era demasiado incontrolável. Em seguida, o narrador (Kundera) lembra-se de Nietzsche, “Tenho sempre diante dos olhos Tereza sentada sobre um tronco, acariciando a cabeça de Karenin, e pensando no desvio da humanidade. Ao mesmo tempo, surge para mim uma outra imagem: Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro explode em soluços” (p.p. 291-292).

Distanciando da humanidade, Nietzsche percebe o amor pela fragilidade (mesmo que isso signifique traços de sua loucura), e Tereza mostra sua dedicação a Karenin (mesmo que isso seja prova de seu medo da solidão). Mas o gesto de Tereza carrega o porquê de a leveza ser insustentável: em algum momento é impossível negar-se a responsabilidade, não se importar. É preciso, diante das circunstâncias, dizer “sim” a vida como se a escolha fosse nossa. É, na realidade, fundamental fazê-las (as escolhas) nossas, assim reconstruindo ou forjando a liberdade mesmo que na aparência.

Wuldson Marcelo, corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979, em Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação em Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos e autor de dois livros de contos que estão entre o prelo e o limbo, “Obscuro-shi” e “Subterfúgios Urbanos”.
      

2 comentários

Débora Maria Macedo disse...

Esse artigo era tudo o que precisava para reler Kundera. Vamos ver o que 10 anos de amadurecimento e essa análise acurada faz pela minha visão de interlocutora.
Obrigada, Wuldson! Posto aqui o resultado, quando houver.

Débora

Anônimo disse...

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