Bailando com o Zumthor
Voz. Esse ruído contínuo que nos acompanha desde que o
mundo é mundo. Do útero ao suspiro derradeiro, quem conta que ainda estamos
vivos.
A voz do outro que entra de mansinho. Ecoa e se mistura
lá dentro nas profundezas do que somos. Verdadeiro ménage rítmico de gozo
poderoso.
Sonoro.
Subversivo.
E como não pensar na voz do mundo? Tantas vezes sem
palavras. O soprar do vento no casaco. Os passos da cidade. O cair dos tijolos
que nos formam. O riscar dos fósforos. O lamento das janelas escancaradas. O
som possível de cada imagem que acena.
Tudo fala, mesmo que não diga. Ecoa no nosso corpo. E a
partir dele, quanta coisa floresce ou definha.
Já no texto, essa voz é música. Porque as letras se
aconhegam umas nas outras. Corpóreas, cócegas, macias ou pontiagudas. As letras
do teclado enquanto teclas de um piano. E se você me ouve é porque há música.
Sem som, a minha voz seria silêncio. Bico de criança que tenta, tenta, tenta,
mas não consegue assobiar. Assopra insatisfeita.
E se for um poema… Ah, se for um poema… A voz é
excelência! Recupera sua ancestral vocação de entoar o sublime. Poesia nasceu
assim, pra gente falar com os deuses. E a bandida ainda pula, salta, vive e
revive. Utopicamente mágica.
E se for prosa… Ah, se for um texto… A voz é além da
fronteira. O outro sai do livro e vem pra dentro da gente. Ou até essa voz
aqui, besta de tudo, chacoalhada pelo ritmo da leitura de vocês.
Toda leitura é uma dança a dois. Voz boa é capaz de se
misturar com a nossa – aquela mais urgente, do dia a dia; e aquela outra, a do
desde sempre. O que importa é que na fronteira – daqui praí – a voz se
transforma. Não é mais minha, nem de vocês. Voz é coisa própria. E o mundo
caminha por contágio. A única via porque coletiva.
Daí esse convite à voz de Paul Zumthor em seu delicioso
– delicioso mesmo - Performance,
recepção e leitura. Foi dele que tirei essas ideias malucas. A ideia era
escrever uma resenha, mas o Zumthor me chamou pra dançar. Não deixem de ler
esse livro. Escolham o que quiserem ouvir de suas páginas. A sintonia é sempre
íntima, o prazer é garantido.
Voilá, liguem o som:
"A
voz é uma subversão ou uma ruptura da clausura do corpo. Mas ela atravessa o
limite do corpo sem rompê-lo; ela significa o lugar de um sujeito que não se
reduz à localização pessoal. Nesse sentido, a voz desaloja o homem do seu
corpo. Enquanto falo, minha voz me faz habitar a minha linguagem. Ao mesmo
tempo me revela um limite e me libera dele.
A voz
repousa no silêncio do corpo. Ela emana dele, depois volta.
Escutar
o outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa
voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma atenção que se torna meu lugar, pelo
tempo dessa escuta.
Dizendo
qualquer coisa, a voz se diz. Por e na voz a palavra se anuncia como a memória
de alguma coisa que se apagou em nós: sobretudo pelo fato de que nossa infância
foi puramente oral até o dia da grande separação, quando nos enviaram à escola,
segundo nascimento. Não se sonha a escrita; a linguagem sonhada é vocal. Tudo
isso se diz na voz".
E que tal mexer o corpo?
"O
que entender aqui pela palavra “corpo”? Despojado como ele está em minha frase,
parece escapar, por demasiado puro e abstrato (…). No entanto, é ele que eu
sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma
presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço
dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade
vivida e que determina minha relação com o mundo.
Dotado
de uma significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu
vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e de
órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, do
institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso
primeiro.
Eu me
esforço, menos para apreendê-lo do que para escutá-lo, no nível do texto, da
percepção cotidiana, ao som dos seus apetites, de suas penas e alegrias:
contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos,
sensações de vazio, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou sua
queda, o sentimento de uma ameaça ou , ao contrário, de segurança íntima,
abertura ou dobra afetiva, opacidade ou transparência, alegria ou pena
provindas de uma difusa representação de si próprio".
Em: Performance,
recepção e leitura de
Paul Zumthor (Cosac Naify/2007).
Tatiana Carlotti - Balzaquiana convicta e amante das letras. Pulsa no Centro de São Paulo ao lado do Balzac, seu gato. Acredita na força da delicadeza e na densidade da leveza. Ama bastante. Ainda sonha... Site: SobremargenS.
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