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CINQUENTA TONS DE CINZA [Raul J.M. Arruda Filho]

CINQUENTA TONS DE CINZA 


O romance pornográfico (ou erótico) está esgotado. Ou melhor, morto. Nos últimos dois séculos não houve novidades no front. Todas as travessuras sexuais possíveis foram descritas pelos libertinos dos séculos XVIII e XIX. Tentativas recentes, quase todas de cunho autobiográfico, como Cem Escovadas Antes de Ir Para a Cama (Melissa Panarello), A Entrega – memórias eróticas (Toni Bentley), A Vida Sexual de Catherine M. (Catherine Millet) e os brasileiros O Garçom B (Alma de Assis) e O Doce Veneno do Escorpião (Bruna Surfistinha) não passam de pálidos simulacros de clássicos como Os 120 Dias de Sodoma ou Escola de Libertinagem (Marquês de Sade), Fanny Hill (John Cleland), Delta de Vênus (Anaïs Nin) ou História de O (Pauline Réage).

Cinquenta Tons de Cinza, primeiro volume da trilogia escrita pela inglesa Erika Leonard, mais conhecida como E. L. James, ambiciona provar que esses livros que se lêem com uma só mão" (na saborosa – e verdadeira − expressão criada por Jean−Marie Goulemot) são uma forma de resistir ao marasmo que devora a literatura mundial. Obviamente, por melhores que sejam as boas intenções, a autora não obteve o sucesso ambicionado. O livro que ela escreveu é, para dizer o mínimo, chato. E repetitivo. Pouco criativo.

Como o público distante do mundo literário adora um bom escândalo, a narrativa, que os britânicos apelidaram de mommy porn (pornô para mães), vendeu dez milhões de cópias nos países de língua inglesa. Em Estados Unidos, a trilogia é responsável pelas vendas de 25% do mercado de ficção adulta. A editora que publicou Cinquenta Tons de Cinza no Brasil aposta em igual popularidade, tanto que a tiragem inicial foi de 200 mil exemplares.

Cinquenta Tons de Cinza, recuperando parte da tradição romanesca, é uma narrativa burguesa, daquelas que estão visivelmente preocupadas em glorificar as vantagens do dinheiro, do poder e do bom gosto. Em algumas cenas, a narradora não economiza nas descrições sobre locais paradisíacos, carros velozes, música clássica, comidas e bebidas sofisticadas, objetos de arte, livros raros (Ana Steele é presenteada com um exemplar da primeira edição de Tess of the d’Urbervilles, de Thomas Hardy. Valor aproximado: 14 mil dólares). 


Simultaneamente, o livro não esconde a proposta de ser o retrato deslumbrado de uma mulher carente, Anastacia (Ana) Steele, com visíveis problemas de auto−estima, e que se apaixona pelo primeiro sádico com quem vai para a cama – literalmente. Nenhuma novidade. A virgem deflorada pelo pornógrafo e que expõe − com pormenores impressionantes − o aprendizado sexual não é sequer um tema original.

A estratégia literária que envolve o estilo hard porn (pornografia pesada) está no relato da dor. Seja física, seja psicológica.

O prazer do dominador está na dor que inflige no dominado (muitas vezes tentando impedir que o dominado obtenha prazer). O dominado sente prazer no prazer do dominador. E goza no gozo que supostamente deveria lhe ser negado. Essa não é a regra geral, obviamente. Em muitas circunstâncias, seguindo um princípio elaborado pelo Marquês de Sade, gozar está necessariamente vinculado com a dor. Após a degradação da parte submissa, cabe ao torturador oferecer alguma espécie de recompensa. Então, o gozo sexual se torna a forma mais sublime de integração entre as partes envolvidas, asseguram os sado-masoquistas. Acredite se quiser.


A história que (des)une Ana Steele e Christian Grey, como todo texto pornográfico, não se caracteriza pela boa construção literária. O texto não passa de uma espécie de pré−roteiro, desses que sonham em se transformar em filme de sucesso (nenhuma surpresa: o livro foi comprado por uma subsidiária da Universal Pictures por 5 milhões de dólares).

Os diálogos ágeis, bem estudados, quase inteligentes, procuram encobrir os clichês. Procuram esconder os lugares-comuns que caracterizam a literatura pornográfica. Mesmo quando a narrativa parece ser mais contemporânea, mimetizando mensagens eletrônicas (uma forma moderna de diálogo), há visível incentivo ao bocejar. Inacreditavelmente, a protagonista, 21 anos, estudante universitária, nunca, repito, nunca tinha recebido um e-mail. São deslizes desse calibre que destroem o texto. Em compensação, a quantidade − meticulosamente calculada – de descrições sexuais não permite que o leitor durma. Pelo contrário, estimula sensações e fantasias. 


Ana Steele (de steel, aço) não está preparada para ser dobrada no fogo siderúrgico de Christian Grey (grey, cinzento). Talvez seja esse o seu páthos (paixão, sofrimento, doença), talvez seja essa a sua vocação. A história que ela conta, na primeira pessoa, repleta de sentimentalismo barato, parece ser uma forma de resistência contra o estilo de vida do amante. Pura ilusão. Somente os leitores politicamente corretos caem nesse conto do vigário. Ela, depois de (a)provou a forma de tratamento que recebe do amante, descobre que gosta de ser humilhada - embora, por diversos motivos, resista a essa aviltação. Em outras palavras, embora adore o sexo selvagem praticado com o amante, possui restrições morais contra o espancamento. Ao mesmo tempo, em estratégia de encolhimento emocional, tenta evitar o conflito. Aguenta o quanto é possível. E gosta. E goza. Diversas vezes.

Ana Steele suporta a humilhação imposta pelo predador sexual porque o prazer que obtém nessas sessões de violência se assemelha às delícias obtidas no uso de alguma droga poderosa. Ou melhor, de algum afrodisíaco muito potente. Poucos viciados conseguem aceitar que estão doentes, que precisam de tratamento. Sou mesmo uma marionete e ele é o titereiro, confessa Ana Steele, quase ao final do livro.

Christian Grey, protótipo do macho autoritário, maníaco por controle, adora bater. Ele goza com a submissão feminina. Nada de novo, mais uma vez. A literatura está repleta de personagens fisicamente poderosos e paupérrimos emocionalmente.

Estranhamente, algumas mulheres imaginam a possibilidade de transformar esse tipo de fascista em príncipe encantado. Algumas conseguem. E vivem felizes para sempre. Pelo menos, em sonhos.

Leitores sádicos ou masoquistas encontrarão em Cinquenta Tons de Cinza algum divertimento – a masturbação (física, intelectual) é uma possibilidade quase incontrolável nesse tipo de literatura.



A atriz Selena Gomes não se intimidou com a controvérsia e posou de leitora voraz dos livros escritos por E. L. James!!!


P.S: Os dois outros volumes da trilogia, Cinquenta Tons Mais Escuros e Cinquenta Tons de liberdade, devem ser lançados em 17 de setembro e 1° de novembro de 2012, respectivamente.




Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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