O Direito de Greve e a Voracidade do Capitalismo: Entre a Conquista e a Ilegalidade no Tempo Líquido Moderno
Em 2011, greves foram declaradas ilegais em Mato Grosso. A greve dos professores da rede pública do estado, deflagrada em 06 de junho do mesmo ano, foi proclamada ilegítima por liminar assinada pelo desembargador José Tadeu Cury em 21 do mesmo mês. A decisão se deu após um pedido da Procuradoria Geral do Estado (PGE). A justificativa se amparou no direito da população de receber os serviços públicos de forma integral e contínua (fonte: http://www.educacionista.org.br/jornal). Outra greve entendida como violação ao direito popular de atendimento público foi a dos servidores do município de Cáceres. Depois de 81 dias de paralisação, no dia 27 de junho, o juiz Alex Nunes de Figueiredo, da 4º Vara Cível da Comarca de Cáceres, determinou o retorno imediato dos servidores municipais, alegando que a greve era ilegal e abusiva, e que o sindicato não houvera anunciado com antecedência a paralisação, como prescreve a lei, e que não provou a regularidade desta. Além do mais, segundo o juiz, as tentativas da prefeitura em solucionar o conflito e sinalizar disposição às negociações foram ignoradas completamente pelo sindicato, ferindo a dignidade do povo cacerense (fonte: http://www.rdnews.com.br). Uma terceira greve no estado de Mato Grosso teve o mesmo destino. Em 6 de julho, a paralisação dos servidores da Secretaria do Estado do Meio Ambiente (SEMA) teve determinação desfavorável por parte do poder judiciário mato-grossense. O desembargador Mariano Alonso Ribeiro Travassos, apesar de reconhecer o direito à greve pelos funcionários, conforme garantia dada pelo supremo Tribunal Federal (STF), defendeu que por se tratar de um serviço essencial à defesa do meio ambiente, não pode sofrer interrupções quando se trata de um momento tão crítico como o atual, época de queimadas constantes (http://www.circuitomt.com.br).
E hoje, em 2012, depois da paralisação de boa parte das categorias do funcionalismo público federal, o fenômeno do Judiciário brasileiro de tornar greve algo ilegal permanece. Logo, nestes últimos dez anos, quando o partido que ocupa o Palácio do Planalto tem “Trabalhadores” no nome e uma história rica em greves homéricas e memoráveis. Mas em que consistem as decisões dos nossos juízes em jogar nas “trevas” um direito sustentado pela constituição? Será que a greve não é mais um elemento legítimo de reivindicação do jogo democrático? Aparentemente, a ideia de progresso social serve para gerar às classes dominantes a possibilidade de exigir o contínuo processo de produção de mercadorias e serviços para atender as demandas do comércio, dos consumidores e das instâncias institucionais públicas e privadas que lidam diariamente com pessoas (instâncias contaminadas por um mal chamado burocracia, que obstrui o dinamismo dos processos, seja de direita ou de esquerda, na democracia ou na ditadura). Homens e mulheres, nos últimos três séculos, desde a Revolução Industrial, se veem cada vez mais imersos/presos ao trabalho. A relação ambígua que travamos com o trabalho no mundo contemporâneo, nos faz perceber a labuta semanal (diária) como uma razão de viver ao mesmo tempo em que ela se imiscui em todos os aspectos da existência, o que acaba por naturalizar a reificação do ser humano, e o capitalismo abstrato tenta negá-la com a oferta de uma grande quantidade de bens para consumo dos membros da sociedade, sejam das classes baixa ou média. Como postulam os filósofos T. W. Adorno e Max Horkheimer, “O aumento da produtividade econômica, que por um lado produz as condições para um mundo mais justo, confere por outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controla uma superioridade imensa sobre o resto da população” (A dialética do esclarecimento: fragmentos Filosóficos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p.14).
O capitalismo abstrato, com seus poucos magnatas e bilhares de investimentos monetários circulando no mercado financeiro internacional, não condena a greve (a resistência) tão somente para exercer a exploração sistemática, mas também para observar sua própria sobrevivência e esvaziar movimentos contestatórios (porque ideias podem ser mais incendiárias que guerras). Para isso, os meios de comunicação mostram-se fortes aliados – e lembrando que no Brasil, apesar das emissoras de televisão pertencerem à particulares (megaempresários, jornalistas, pastores, etc.) elas são concessões públicas – na proposta de entender a greve como distúrbio, transtorno e impedimento para o desenvolvimento econômico do país. Assim, assistimos aos âncoras dos telejornais anunciarem que “a greve dos professores universitários prejudica os estudantes...” ou “a greve dos motoristas causa danos aos usuários, as empresas e ao comércio”. E tudo é relatado como se a greve fosse a primeira opção e não o ato final depois de dezenas de negociações frustradas (isso quando o empregador se dispõe a negociar) nos bastidores da política ou das corporações empresariais. Mas, devemos lembrar que os meios de comunicação – TVs, rádios, jornais, etc. – respondem aos interesses de seus proprietários (isso mesmo, a comunicação no Brasil, e no mundo, é tratada como propriedade), que atendem a vontade do capitalismo abstrato de criar obstáculos para a pausa, a reflexão e a denúncia. O Estado privatizado e desregulamentado segue a necessidade imperiosa do capitalismo de determinar bloqueios à resistência. Os aparelhos de Estado para repressão (polícia, forças armadas, entre outros) contêm com violência protestos que revelam as disparidades do capital: a riqueza de poucos a custo da pobreza da maioria; e ganhos cada vez mais elevados de alguns e perdas salariais visíveis para quase todos. A greve (apesar da pouca participação e da presença não efetiva nas deliberações de todos os trabalhadores) ainda representa a maneira mais contundente de exercer pressão nos governos e empresas e construir o reconhecimento do trabalho realizado. Mas para as mídias, greves são sinais de estorvo e desrespeito à população. Porém, elas escondem os verdadeiros motivos da condenação: o desagrado aos interesses econômicos dos agentes do capital (privado e público). Assim, as pessoas, aos poucos, perdem o sentido da solidariedade e não aderem aos protestos que causam paralisações. No Brasil (na verdade, no mundo atual), raramente, se pararia o país por um dia (como ocorreu na França, em 1968, na primeira greve geral na história do país, na qual 11 milhões de trabalhadores se envolveram, e que permaneceu ativa por mais de duas semanas) para lutar contra políticas governamentais que se converteriam em desemprego e prejuízo salarial para o povo. Atesta-se aqui a força da manipulação midiática que investe no instinto conservacionista da maioria para desqualificar denúncias e reivindicações como empecilhos para o progresso e a paz numa democracia. Ou seja, fomenta-se a desagregação e a perda à aspiração de um espírito coletivo. Ainda mais nesta globalização de grandes empreendimentos nos quais dinheiro público e privado se mistura. Segundo Milton Santos, “A globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva, reduz as noções da moralidade pública e particular a um quase nada” (Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 65).
Zygmunt Bauman nos lembra de que no mundo moderno líquido, o capital depende dos consumidores, ou seja, as demandas que serão exigidas necessitam de ideias, que, por sua vez, gerarão a possibilidade de consumo, de viagens, de lucro para o capitalismo abstrato que condena milhares à falta de condições para competir por uma fatia do mercado, “No planejamento das viagens e na preparação de deslocamento do capital, a presença de força de trabalho é apenas consideração secundária. Consequentemente, o “poder de pressão” de uma força de trabalho sobre o capital (sobre as condições de emprego e disponibilidade de postos de trabalho) encolheu consideravelmente” (Zygmunt Bauman, Modernidade líquida, Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 174). O que vale dizer que no setor privado, a demissão sumária e a ameaça do desemprego são as principais ferramentas do capital para obstruir deflagrações de greve e outras formas de se reivindicar. Já no setor público, onde há a estabilidade no emprego, a ameaça de suspender ou cortar o ponto do funcionário e a sistemática recusa ao diálogo, o que gera a contínua defasagem salarial são as estratégias do Poder para manter sobre controle os ímpetos grevistas. Agora, temos o Judiciário a perceber ilegalidade em um direito constitucional, que consagra ao capital (seja ele privado ou público, de corporações ou dos Estados) o seu íntimo desejo de saber que explora e assumir tal conduta, mas protelar a contrapartida que produzirá “as condições para um mundo mais justo”.
E, no dia 2 de setembro de 2012, ocorreu no Senado, uma Audiência Pública para debater o direito de greve no Brasil, na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Na Audiência comentou-se e se criticou a exaustão o projeto de lei do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), que prevê a regulamentação do direito de greve no serviço público, sendo a exigência de que haja o funcionamento de pelo menos 60% dos serviços considerados essenciais (como da saúde e de alguns órgãos de segurança) e a proibição de greve em outros setores como a da Polícia Militar. E o não pagamento integral dos dias parados dos grevistas. Segundo o projeto, só se poderia pagar até 30% do período da paralisação. Ou seja, é um projeto que limita a atuação do trabalhador, dizendo defender o cidadão, que não é membro do governo e é o mais afetado pela crise.
Desse modo, um direito conquistado, o da greve como recurso (geralmente, o último. Apesar de que o direito de greve no serviço público não era regulamentado no Brasil até o ano de 2007, quando o Judiciário o “regulamentou”, dado o impasse e a falta de decisão do Legislativo em resolver a questão) para reajustes salariais e melhorias das condições de trabalho, torna-se (consagrando o entendimento neoliberal e conservador) baderna, desrespeito a vocação progressista de uma nação e prejuízo à população. Pode-se discutir se todos os servidores dos órgãos públicos deveriam parar ao mesmo tempo, ou se pelo menos 30%, pelo menos, do efetivo deveria garantir o atendimento aos cidadãos, mas a possibilidade de compreender a greve como ilegal, desrespeito à constituição e transtorno deliberado à população é ratificar a vontade dos agentes do capitalismo abstrato, em uma sociedade democrática, de tornar a aceleração do tempo no mundo contemporâneo líquido sintoma da exploração e dos desmandos de um liberalismo que vê no trabalho apenas um modus operandi do progresso econômico. Ideia corroborada pelo Poder Judiciário que nos últimos anos transformou uma conquista do trabalhador em afronta ao Estado de Direito, logo construindo a sensação de que as paralisações são um ultraje às instituições. Uma pena, pois tais mecanismos aproximam-se das exigências dos Estados totalitários, que começam seu percurso autoritário sufocando a saudável sublevação popular na busca de seus direitos trabalhistas e da liberdade de se expressar.
Wuldson Marcelo, corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979, em Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação em Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos e autor de dois livros de contos que estão entre o prelo e o limbo, “Obscuro-shi” e “Subterfúgios Urbanos”.
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