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Rio Morto [Romulo Netto]

Imagem do Google
Rio Morto


Foi bem dali naquele pedaço de chão que não tinha decidido se queria ser cerrado ou sertão que do meio do chão um dia um filete d’água supitou se libertando da prisão subterrânea. Não querendo correr pro leste talvez temendo encontrar morrotes ou montanhas, seguiu rumo oeste, capengando. A menos de cem metros da nascente, meio sem força se deparou com algumas árvores retorcidas e resolveu parar pra breve descanso. Deve ter durado séculos porque depois de muito tempo o mirrado filete d’água se engordou rasgando o ventre da terra criando aquela que deve ter sido a primeira lagoa por tais desconhecidas paragens.
As águas acomodadas um dia se enfureceram e saíram arrastando sambaibeiras, cajuzinhos do mato, pequizeiros, buritis e outras árvores menores que não tinham conseguido fincar raízes profundas naquele ermão de Deus.
Só estacaram quilômetro e meio depois quando despencaram dentro de enorme concha de rochas escuras. Pra escapar daquela prisão seria preciso muita água e ali na incerteza entre ser sertão e cerrado não tinha muito que esperar.
Assim as veredas ficaram anos, talvez centenas deles batendo nas margens, cavucando rochas e a pouca terra, engordando a vizinhança com pequenas árvores que encorajadas decidiram crescer. Não foi da noite pro dia. Mas surgiram tamboris, aroeiras, perobas e outras espécies que cismaram permanecer viçosas ao lado da vereda mãe. Até uns atrevidos ipês-roxos, brancos e amarelos fincaram vigorosas raízes praquelas bandas inóspitas.
O tempo devia de estar pra setembro pois nalgum lugar longínquo já existia a primavera, quando um passaredo sem igual dominou o ar, calando o barulhar das folhas dos buritis, escurecendo o céu.
Sem pedir permissão as aves vieram pra ficar e na sua cola trouxeram antas, pacas, tatus, catetos, onças, capivaras, jacarés e até o molenga do jabuti que chegou meio século depois no dizer da arara vermelha que não se fartava de roer o delicado e delicioso buriti.
As gordas crumatás, os saltitantes dourados e as faladeiras pirapetingas perderam o sono com a quantidade de jacarés que não se cansavam de farrear perseguindo por horas seguidas os cardumes acostumados ao sossego das águas cristalinas da vereda.
Com o passar dos anos a veredona foi engordando até que no justo dia a bolsa arrebentou e as águas saíram rolando mais pro oeste, sem encontrar resistência. Estancaram quilômetros adiante como a parada fosse pra repensar o destino. E durou mais alguns séculos. Novas árvores surgiram, outros peixes se juntaram num imenso festival aquático. Os animais carnívoros se irmanavam e só mesmo a fome intensa permitia a caça controlada.
A segunda vereda não mais se contentava com sua condição de água quase irremediavelmente parada, principalmente agora que um casal de bisbilhoteiras araras veio anunciando que pouco mais a oeste a terra se abria em duas direções: pro sul um cerrado largo esperando águas e bichos, pro norte a imensidão de árvores retorcidas e outras que de tão grandes pareciam arranhar os céus, por falta d’água pareciam destinadas a definhar até a morte. Alguns bichos e a maioria das aves preferiam subir por temer o frio do sul, mas não cabia a eles a decisão. Apenas a vereda mãe sabia de seu destino. E mais anos se passaram com novas chegadas de pássaros e bichos, além de grande variedade de plantas trazidas, semeadas pelos novos habitantes.
A região inteira tomava ares de floresta, mas sem água tinha apenas o destino de deserto. A vereda mãe continuava entrevada sem tomar decisão de qual caminho seguir.
Num agosto quando tudo indicava que o fim do mundo estava a menos de um palmo de distância, o pequeno filete d’água pai de todas as veredas engordou tanto que o útero da terra não suportou a pressão. Um estrondo invadiu o ar enquanto o dilúvio desabava lavando toda porção de morros, morrotes, campos e cerrados, arrastando o que encontrasse pela frente, até se entender com as águas da segunda vereda. Juntos decidiram rumar pro norte semeando novas vidas.
Bem ali naquele pedaço de chão parece que só existia espaço pra paz e liberdade. Os bichos foram acostumados a respeitar uns aos outros. As caçadas só aconteciam quando estavam despertos, não havia surpresa ou traição, difícil acreditar que faziam parte do mundo.
Depois de horas embarrigudando as veredas, as novas águas foram se desenraizando, transformando cada filete em novos córregos pra depois de longa travessia desembocar no maior deles, no pai de todas as águas, virando um rio mundão, assanhado, despejando farturas pra tudo quanto é lado, renascendo vidas, alimentando bichos, florestas, desconhecendo perigo e inimigos.
Devem ter passado centenas de milhares de anos até que o primeiro homem se estabeleceu nas proximidades de suas margens, construindo sua choça onde amou a mulher que lhe rendeu os primeiros filhos. Foi ali que acendeu o primeiro fogo, matou a primeira capivara, pescou seu primeiro peixe. Em seu rastro vieram outros iguais que tratavam a floresta com o mesmo carinho dedicado aos da família. Aquela harmonia arrastava certezas de que duraria até que o mundo acabasse.
Quando o pajé sonhava que  caça estava findando era chegado o momento da mudança. Dezenas de canoas subiam o rio pai até encontrar boa localização pra novas aldeias. Quase nunca iam pra muito longe porque algumas viúvas insistiam em retornar ao cemitério pra mijar sobre as sepulturas do maridos, só assim diziam elas, eles deixariam de sentir saudades permitindo que as mulheres pudessem viver em paz.
Foi logo após uma mudança que eles chegaram sorrateiros. Os homens tinham embrenhado na floresta em busca de madeira e palhas de palmeiras pra construírem as novas choças. As mulheres não tiveram tempo pra correr, a maioria foi degolada enquanto as crianças amarradas e colocadas nas canoas que desapareceram em seguida.
Mais tarde Tsorobel soube que até chegar nas águas salgadas mais da metade das aldeias foram queimadas. Dali em diante eles se aprofundaram mais e mais pela floresta pensando talvez em ficar bem longe do inimigo que ainda lhes era invisível.
Por mais de três centenas de anos os índios foram sendo massacrados em cumprimento às ordens de sucessivos governos, que viam neles o empecilho pra realizassem a marcha rumo ao oeste, única maneira de tomar posse daquele vasto território impedindo a ocupação pelos pretendentes europeus que demonstravam grande interesse por aquelas terras. Para os inúmeros povos selvagens a verdadeira desgraça inda estava a caminho.
Após o final da segunda grande guerra só se ouvia falar que se não houvesse maior produção de alimentos mais da metade da população mundial morreria de fome. A vastidão de nosso território incitava apressar em definitivo a marcha pro oeste.
Invocando o patriotismo dos sulistas, o governo federal obrigou os estados com baixa densidade populacional a vender terras consideradas devolutas a preços irrisórios. Mesmo sem estradas, as enormes porções de florestas desconhecidas atraíram colonos que após terem devastado seus estados estavam prontos pra atender ao chamamento da presidência da República.
Com suas gonorréias, sarampos, coqueluches, varíolas, gripes e aguardente em poucos meses dizimaram a imensa maioria da indefesa população indígena que habitava quase toda a Amazônia brasileira.
O sucesso da experiência japonesa no Vale do Paracatu, com experimento no plantio de soja no cerrado mostrou ao mundo que ali estava a solução pra acabar com a fome. Os famigerados produtores rurais varreram o centro-oeste com a voracidade de nuvens de gafanhotos.
Pra evitar o genocídio generalizado das mais diversas etnias o governo federal deu início a ambicioso processo de demarcação de terras indígenas.
Políticos e empresários rurais se uniram em poderosa bancada ruralista trancando meses a fio a pauta no Congresso Nacional.
Com o poder de legislar através de medida provisória, dois presidentes da República enfrentaram os ruralistas e demarcaram as mais importantes terras ancestrais.
Os homens de botina, plantadeiras, colheitadeiras, tratores, aviões de pulverização agrícola, tendo como pano de fundo as melhores bancas de advogados que o dinheiro pode pagar não ficaram parados.
Em defesa da balança comercial, pautados na necessidade de espaço pro plantio de soja, milho, algodão, arroz, pra criação de frangos, porcos e gado bovino, protegido por um conjunto de leis que lhes dava impunidade irrestrita, devastaram em dez anos cinquenta por cento das matas ciliares próximas aos rios que fazem divisas com as reservas indígenas. Metade desses mananciais está poluída por agrotóxicos e metais pesados. Ainda assim as exportações continuam crescendo na mesma proporção que os povos indígenas morrem de inanição, doenças infecciosas e cânceres.
Os donos do poder que chegaram aqui há trinta anos continuam mais donos do poder, pois conseguiram colocar o poder público a seu serviço.
No leito da morte Tserisé Kaô ainda conseguiu me dizer: − os rios estão mortos, mas o homem branco está aí: vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores, ministros e presidente da República. Ladrões profissionais...




Romulo Nétto, mineiro radicado em Cuiabá há 35 anos. Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade de Brasília,  veio para o Estado em 1971 para trabalhar como jornalista na Universidade Federal de Mato Grosso. Desde então nunca mais saiu, só quando se aposentou, aos 47 anos, e passou um período no Nordeste. Escritor, muito mais que jornalista, ele é daqueles sujeitos que não esquecem de onde vieram.
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

Um comentário

tesco disse...

Romulo escreve com a consciência de quem conhece, essa realidade, infelizmente, não é fruto da imaginação. Se fosse, seria sério êmulo para Stephen King. Mas o estilo é entusiasmante. Parabéns ao Romulo a ao blog, por difundir seu texto.
_Abraço.