Serapião Fala Mole
Serapião Fala Mole nunca escondeu de ninguém sua
loucura. Dizia que se alimentava de ventos e sonhos. Escrachava, lembrando a
todos a impossibilidade de lhe roubarem os alimentos.
Se chovesse arranjava um gramado fofo,
estatelava-se, abria a bocarra deixando a água descer pela garganta com a força
de corredeira.
Quando a chuva cessava, dando início ao período
seco, cofiava a barba, preguiçoso, media a distância que o separava do Riacho
de Sangue, pesava os prós e os contras, pra depois, só ao saber a língua
esturricando arriscava mover-se à cata de algum filete d’água onde pudesse
matar a sede.
Soletrava lua e estrelas quando o céu se encharcava
de azul, brindando os olhos com clarões de feri-los quase ao ponto de cegar.
Desconversava ligeiro quando alguém se achando mais
esperto tentava fazê-lo dizer o que não devia.
Muitos por sua esquisitice o julgavam viciado em drogas. Respondia
que era viciado na vida. Nada mais.
Agora mesmo estava de bem com o mundo. Queria se
entupir de alegria, andar sem destino, cavalgar os raios do sol.
Essas loucuras se apossavam dele, sem mais nem
menos, mas Serapião aprendeu a viver com todas as doidices e não dava muita
bola pro que pensavam a seu respeito.
Era tempo de jabuticaba e ele ficava sentado,
esquecido de tudo, xingando a natureza pois que ele tinha vontade era de chupar
gabiroba.
Seus tempos e coisas pareciam ter mudado. Sossego,
calma, o olhar perdido em busca do futuro pareciam reinar, dando a Serapião
Fala Mole convicção que não podia se esconder detrás de morros e moitas,
deixando que as pessoas buscassem respostas pras perguntas ainda não feitas.
Era homem de poucas palavras, mas jamais largava companheiros na mão.
Bisbilhotava tudo querendo descobrir o que movia o
mundo. Patético, alegre, cabisbaixo ou triste só se encontrava quando dava de
cara com a Cachoeira de Livros.
As gentes de Ipê-branco, minúsculo povoado que o
progresso se esqueceu há tempos de olhar, reclamava dizendo que as loucuras de
Serapião Fala Mole impediam o governo estadual, mais preocupado com as
exportações de soja transgênica, milho, algodão, etanol, arroz e madeira
extraída ilegalmente das reservas indígenas, de investir naquelas bandas,
deixando-os morrer quase que à míngua.
Há mais de dois anos que um médico da Secretaria de
Saúde não visitava a comunidade. Quem fosse acometido de algum mal súbito tinha
que se virar procurando a cidade mais próxima. Quando dizia que vinha de
Ipê-branco no sempre era largado em qualquer canto, esperando a morte chegar.
O abandono chegou a tal ponto que o povo do Ipê,
agora preferia morrer aos poucos, devagarinho, na solidão de seus ermos, sem se
preocupar em buscar alívio pros seus males nas vizinhanças. Ademais aquela
gente nunca virava as costas aos amigos, mesmo quando acreditava que aquela
pessoa poderia destruir o povoado. Mas ninguém acreditava que Serapião Fala
Mole fosse tão ruim a ponto de provocar o desaparecimento de Ipê-branco do
mapa. Podia ser lelé da cuca, variado, mas todos o sabiam e reconheciam
inofensivo, um louco manso, cujo único mal era dizer verdades e viver lendo
solitariamente seus livros debaixo de sol ou chuva.
O povão só moderava a perseguição acirrada quando
ele colhia a cana-de-açúcar, preparando em seu improvisado alambique a pinga de
orelha, especialíssima e com parte dela produzia centenas de litros dos mais
variados licores. Festa junina sem a bebida apurada de Serapião Fala Mole era
impensável.
Por mais brasileira que fosse aquela população,
acostumada a roubar até galinha morta, algo estranho acontecia com a produção
de Serapião. Ele deixava suas garrafas sobre imensa mesa ou dentro de caixas,
com o preço. Ao lado uma espécie de urna onde deveria ser colocado o valor de
cada garrafa. Durante anos nunca foi passado pra trás. No outro dia, depois da
festança, pela manhã, quando vinha conferir o resultado da venda, sempre
encontrava o equivalente às garrafas deixadas nas caixas. O povo não tinha
coragem de roubá-lo, embora fosse capaz de persegui-lo e atormentá-lo.
Indecifráveis mistérios da mente humana.
A população do povoado não entendia de onde
Serapião Fala Mole arrancava tantos livros. Perguntado se fazia de desentendido
aumentando ainda mais a curiosidade.
Certo é que as crianças da única escola da
comunidade recebiam regularmente dezenas de livros e elas cuidavam de devorá-los,
com urgência, prevendo a chegada de outros, em breve espaço de tempo. No fundo
existia terna cumplicidade entre elas e seu benfeitor.
Por mais tentassem segui-lo, em determinado pedaço
do caminho ele passarinhava e ninguém era capaz de encontrá-lo. O máximo que
conseguiam enxergar era um gavião-anta, talvez a encarnação avoadeira de
Serapião pra modo de se defender das maldades dos homens. Não havera de ser
novidade. Muita gente acreditava nessa possibilidade, ainda que remota.
Quando julho findou todos os ipês ficaram carecas.
Bastava a primeira chuva pra eles folhescerem e depois vesprando a primavera
florescerem. Era o tempo que Serapião Fala Mole mais gostava no ano. Podia
dividir os momentos admirando flores, insetos e livros.
Tinha vaga notícia do futuro, mas sabia que havia
um lugar reservado pra recebê-lo. Jurava de pés juntos que lá estaria sozinho
ou bem acompanhado. Mas não via razão em se emaranhar nessas brenhas já que
tinha por obrigação viver cada momento do presente.
E seu tempo se resumia em plantar e colher livros.
Destino ou perdição. Eram certezas que mal e mal
conseguia sustentar em suas pernas de andador desnaturado.
Pra ele, hoje foi dia de festa, arrancou uma dúzia
de livros que julgava não mais encontrar em lugar algum, mas lá estavam eles,
enfileirados, alguns semiabertos. Enroscado no Pequeno Príncipe encontrou
Reinações de Narizinho. Apanhou os dois de uma só vez e se pôs a lê-los com
ganância. Os pestinhas viviam fugindo, quanto mais os procurava, mais
escafediam, como pretendessem tornar livros raros. Mas, enfim, os danadinhos
foram agarrados, sem chance de fuga.
Embilocou-se na leitura acabando por esquecer todos
os outros problemas que o afligiam. Até da fome costumeira que naquela hora o
rondava tal qual praga de mulher grávida sem desejos satisfeitos.
Mas o que de melhor havia no mundo, além do livro
companheiro para os momentos mais difíceis? Quando aquele emaranhado de letras
negou-lhe carinho? Ou o fez pensar direito, rejeitando as próprias pechas e
aquelas que os invejosos lhe impunham? Já nem mais ligava quando alguém berrava
ao vê-lo passar: lá envem Serapião
Fala Mole marido de livros! Por certo as pessoas tinham mesmo era mágoa por não
conseguirem entender que ele descobrira o melhor alimento para a alma. E por
serem mesquinhas queriam impedir que ele desfrutasse das gostosuras que encontrava
em cada página lida.
Foi por pura mangação que disseram pra ele que o
céu, lugar que somente os bons alcançavam abrigava a maior biblioteca do mundo.
Em sua santa inocência Serapião Fala Mole acreditou piamente e passou a
perseguir um meio de chegar até lá, mas queria provar primeiro, antes de
morrer, pois se perguntava a todo momento: – será que depois de morto ainda
saberei ler? Será que terei olhos ansiosos à cata de um bom livro? Uma resposta
que só cabia mesmo na boca do tempo.
Quando ficava por demais de aperreado enfiava a
fuça no primeiro compêndio que encontrava pela frente.
Serapião adorava falar compêndio. Enchia a boca de
satisfação irritando as pessoas que, em suas santas ignorâncias acreditavam que
ele estava xingando cada um delas. Nessas horas se contorcia em risadas,
enfurecendo ainda mais o povaréu, que, por vezes corria atrás do padre pra modo
de descobrir o significado das palavras. Mas nem sempre tudo dava certo, pois
acabavam esquecendo o que tinham escutado, enraivecendo o pároco que dizia ter
mais o que fazer além de ficar ouvindo queixumes e fofocas.
É por isso que Serapião Fala Mole gostava mais das
crianças. Elas, no máximo, tentavam irritá-lo com alguma brincadeira ou
grosseria, que de bom coração perdoava. Num longínquo dia fora criança arteira,
o que permitia compreender e aceitar tudo que viesse delas. Por vezes
discordava, envermelhava a cara, socava o ar com raiva, mas tudo coisa
passageira, nada que um bom livro ou pequena história contada bem devagarinho
não curasse.
Sabia de antemão que não tinha tempo para se ocupar
guardando mágoas ou criando desafetos. A vida era tão curta, impossível
dividi-la com quizilas.
Só via o que era belo. E o que era belo estava
encerrado sempre nas páginas dos livros. Não deixava por menos. Queria incutir
na cabeça daquela criançada o valor da leitura e assim ia levando a vida,
rompendo barreiras, construindo um novo mundo.
Não esperava recompensas terrenas. Aceitava de bom
grado o que tinha, pouco se importando com aquilo que a vida negava.
Já não mais guardava rancor das pessoas que
costumeiramente gostavam de chamá-lo louco. Sabia vagamente que sua loucura era
de lucidez estonteante. Bastava-lhe reconhecer incapaz de fazer o mal a
qualquer vivente. Depois, bom depois, ele tinha consolo nos livros...
Quando que ouviu dizer que o céu era um lugar
bonito, com uma biblioteca imensa, livros em todas as línguas e de todos os
lugares, até da esquecida Cuiabá, achou que era tempo de abandonar os
evangélicos que só viviam pedindo dízimo, sem nunca ter lhe dado um só livro.
Além do mais eles não acreditavam em santos e como ele poderia chegar até
aquela biblioteca sem antes passar por São Pedro? Assim se converteu ao
cristianismo, na esperança de conseguir seu lugar bem ao lado daquilo que amava
por sobre todas as coisas: os livros.
Nem se deu ao luxo de avisar ao famigerado pastor
de sua igreja. Ele, esperto como cão raivoso, tentaria todos os meios para
convencê-lo a mudar de ideia. Qual o quê! queria milhares de livros a seu redor
e daquele um miserável não arrancaria nada.
Virou assíduo frequentador da igreja. Se dependesse
dele não perdia uma missa. Até mesmo as celebradas nos dias úteis.
Por vezes estava agarrado num livrinho quando ouvia
o sino repicar. Deixava tudo de lado e corria sem olhar pros lados. Não gostava
de chegar atrasado, temendo assim perder seu lugar no céu.
E os anos foram atravessando e cada vez mais
Serapião Fala Mole acreditava que estava aos poucos garantindo seu lugar.
Arrepiava todinho só em pensar na livraiada esparramada pelas mesas da enorme
biblioteca, podendo pegar um por um sem que ninguém viesse chamar sua atenção.
Igual a sua Cachoeira de Livros. Jamais foi proibido de escolher. Dependendo da
época, se era tempo das chuvas, a queda d’água se avolumava ainda mais despejando
ensurdecedoramente enorme quantidade de brochuras que brilhava quando o sol
batia de frente. Era um festival de luzes, cores e letras, dominando sua vida,
seu pensamento.
Apesar de tudo que fez pela criançada Serapião Fala
Mole sabia que o povo de Ipê-branco sonhava descobrir a origem de seus livros.
Muitos dali juram que aconteceu inesperadamente.
Dizem que ao ser apanhado colhendo dezenas de
exemplares na Cachoeira de Livros Serapião Fala Mole passarinhou de vez.
Transformou-se em imenso gavião-real, com belíssimas asas de Grande Sertão:
Veredas e bico de Vidas Secas alçando voo, rumando pro céu pra nunca mais
voltar.
Romulo Nétto,
mineiro radicado em Cuiabá há 35 anos. Graduado em Comunicação Social
(Jornalismo) pela Universidade de Brasília, veio para o Estado em 1971
para trabalhar como jornalista na Universidade Federal de Mato Grosso. Desde
então nunca mais saiu, só quando se aposentou, aos 47 anos, e passou um período
no Nordeste. Escritor, muito mais que jornalista, ele é daqueles sujeitos que
não esquecem de onde vieram.
Todos os
direitos autorais reservados ao autor.
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