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Com o dedo na garganta [Enio Vieira]

Com o dedo na garganta

Em 1975, no auge da ditadura militar brasileira, o poeta Ferreira Gullar estava na Argentina na situação de exilado. A capital Buenos Aires era mais uma parada na longa fuga que começou pela União Soviética e passou por Lima no Peru e Santiago do Chile. Sua família se esfacelara: a esposa e um dos dois filhos haviam retornado ao Rio de Janeiro. O outro filho desaparecera naquele ano, durante o exílio argentino, em mais um surto psicológico. Os filhos tinham grandes problemas emocionais agravados pelo uso de drogas. Criou-se o vazio na vida daquele intelectual, membro do Partido Comunista e um dos conhecidos representantes da classe média que decidira resistir aos militares.

O clima de “respiração artificial”, para usar uma expressão de Ricardo Piglia, se acentuara na Argentina, às vésperas de mais um golpe político que viria a se concretizar em 1976. “Surgem rumores de que exilados brasileiros estavam sendo seqüestrados em Buenos Aires e levados para o Brasil com ajuda da polícia argentina”, diz. Quando escreve esse relato mais de 20 anos depois, no livro de memórias “Rabo de Foguete” (1998), Gullar sabe que se trata da Operação Condor, na qual os países do Cone Sul atuaram em conjunto para identificar os opositores de um governo que estivessem refugiados em países vizinhos. Na época, a única sensação era a de pavor e necessidade de exprimir, em palavras, aquela situação irrespirável.

Tudo lhe parecia tão absurdo e sem perspectiva que a salvação, segundo ele, só poderia vir da escrita. “Achei que era chegada a hora de tentar expressar num poema tudo o que eu ainda necessitava expressar, antes que fosse tarde demais – o poema final.” Escrever poderia ser a cura ou o paliativo para o isolamento, o sem sentido que sua vida se tornara. A palavra viria a ser o longo “Poema sujo”. No auge dos eventos traumáticos, quando as coisas pareciam difusas, a forma escolhida por Gullar foi a da poesia para capturar sua experiência e deixar um testemunho, caso viesse a morrer de morte natural, sob violência dos militares argentinos ou num gesto próprio.

Um amigo desses tempos disse-lhe de sua preocupação com o estado de espírito do poeta. “Sorri-lhe agradecido e garanti-lhe que o suicídio estava fora de minhas cogitações”, lembra. O sentido de urgência exigiu que Gullar se trancafiasse no apartamento de Buenos Aires por meses, de março a setembro de 1995, e que houvesse um registro em alguma forma antes sair publicado em livro. Por isso, ele reuniu amigos para ler o longo texto e gravou o “Poema sujo” numa fita em áudio – que, por sinal,  é um dos modos preferidos dos psicanalistas para registrar as falas de seus pacientes.

Na nota introdutória de “Rabo de Foguete”, Gullar conta que, em 1975, Paulo Freire pediu a ele um relato da experiência do exílio. Em 1998, o poeta lembra: “Sentia-me traumatizado demais para abordar o tema”. Os episódios vividos por ele nos anos 1970 caracterizam o trauma que se manifesta como algo intransmissível, impossível de ser decifrado pela ordem lógica da prosa. No momento mais doloroso, a forma artística encontrada foi o “vômito” da poesia. É importante observar como um mal-estar físico acaba sendo a imagem para explicar o processo de criação, que muitos escritores preferem associar à ingestão e digestão do vivido.

“Se a linguagem tivesse garganta, meteria o dedo nela e provocaria o vômito verbal... Desapontado me levantei e fui preparar um café, repetindo para mim mesmo: ´o poema vai ter que sair, custe o que custar’”, conta ele. A narrativa mais próxima de algo digerido e não vomitado só sairia em 1998, pois ele diz, na mesma nota inicial de “Rabo de Foguete”, que “o tempo aliviara o trauma” e optou por “contar apenas o essencial”. De alguma forma, a ferida na memória persiste, pois reconhece ter deixado histórias de fora do relato e assim algo continua intransmissível.

O “Poema sujo” tentou buscar, segundo avalia Gullar, o que havia antes da linguagem e os silêncios, que não se tem palavra para explicar. A riqueza do poema proporciona hoje uma série de leituras. Alguns estudiosos preferem ressaltar o embate com a linguagem, mais desligado da experiência. Já Eleonora Ziller Camenietzki opta por ressaltar o quanto a experiência política e a do exílio contribuíram para esse longo poema. Para Alfredo Bosi, “o ‘Poema sujo” é uma longa fala da memória, e o seu objeto, real e imaginário, a cidade do poeta, São Luís do Maranhão. Memória-saudade e memória-desespero. Há tanto dilaceramento nessa reconstrução febril do passado que, lido o poema de um só lance, cala-se toda veleidade de rotulá-lo ideologicamente”.

Ao escolher a poesia, Ferreira Gullar teve um “encontro com o real”, que é a experiência traumática lacaniana, o indizível, o que está fora das possibilidades do pensamento. O real de Jacques Lacan não é o mesmo que a realidade, mas sim algo que escapa à representação por meio de palavras, da escrita. O real não cabe na linguagem, e a luta corporal com vômitos e tudo do autor é para tentar agarrar esse algo sempre inalcançável que estava nos episódios da fuga para o exílio e a sensação de cerco vivida na Argentina.

“Hoje, ao refletir sobre aqueles momentos, estou certo de que o poema me salvou. Quando a vida parecia não ter mais sentido e todas as perspectivas estavam fechadas, inventei, através dele, um outro destino”, conta.  A idéia de salvação pode ser tão somente ilusória, e basta lembrar o conceito de escrita como “phármakon”, de Derrida, que significa ao mesmo tempo “remédio” e “veneno”. A percepção de que o trauma foi todo resolvido, com a poesia, pode ser momentâneo e, por isso, Gullar precisou retomar as experiências do exílio, duas décadas depois, em outra chave e outro período de sua vida, se permitindo até a ironia e o final no tom de farsa em “Rabo de Foguete”.

 Enio Vieira — Jornalista, Colunista da  Revista Bula

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