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Uma coca-cola bem gelada, por favor [Vanessa Ferrari]

Uma coca-cola bem gelada, por favor

Não é a primeira vez que me perguntam sobre o poder transformador da literatura, especialmente quando o interesse do meu interlocutor recai sobre o clube de leitura na penitenciária. Essa é uma questão interessante, não pelas teorias que cada um irá defender mas porque normalmente é uma pergunta que já vem com a resposta embutida: “a literatura é transformadora, né?”. Nesse momento tudo que faço é silenciar, fazendo uma expressão com as sobrancelhas e os olhos bastante sutil, que o outro pode entender como sinal de profunda reflexão, mas na realidade não significa nada.

Não significa nada porque tenho um baú de dúvidas quando a questão é como aproveitamos o nosso conhecimento e o quanto ele nos humaniza. Confesso também que não gosto muito que depositem na literatura tamanha responsabilidade, uma vez que os escritores e suas histórias engenhosas são uma pequena fresta de luz diante das dificuldades da vida. Eu não entendo nada de milagres. Dizem que eles existem, mas nunca presenciei nenhum. Tampouco acredito em transformações radicais, pois qualquer um sabe que mesmo as pequenas mudanças exigem uma força imensurável e, por isso, muitas vezes é mais fácil ir tocando, apesar de sentir um desconforto leve e constante o resto da vida. E, em última instância, se estamos falando de clubes de leitura, estamos falando de literatura, este sim um tema que me anima muito.

Há exatamente um ano comecei a mediar um clube com dezesseis detentas. Até hoje sei pouco sobre os seus crimes e histórias de vida. Quando nos reunimos, não é com mulheres que cumprem pena que eu converso, mas com um grupo de professoras e bibliotecárias que trabalham na penitenciária valendo-se do benefício da remissão de pena, ou seja, a cada três dias de labuta, um a menos na sentença. Eu acredito na inteligência dessas mulheres e não facilito a vida de ninguém, todos os livros que lemos têm qualidades literárias importantes e proponho obras com temas e estilos variados, porque esse é um dos objetivos dos clubes de leitura: criar repertório. No período de doze meses lemos treze livros, três vezes mais que a média nacional. Esse dado já é excepcional.

Não sei se quando saírem da cadeia elas darão respostas diferentes às mesmas questões cruciais de suas vidas porque leram Dois irmãos, Persépolis ou Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, mas sinto uma alegria imensa quando ouço um comentário dizendo que Tereza Batista, de Jorge Amado, é muito melhor que A estrela amarela, de Jennifer Roy. Ou que O 11º mandamento é um livro que exige demais do leitor porque a história só engata depois da página cem. Ou que Apego, de Isabel Fonseca, tem um narrador-personagem que fica dando voltas atrás do próprio rabo. Nesse último encontro, ouvi de uma participante que há uma percepção de que nossos encontros literários são sinônimo de prazer.

Para comemorar um ano de clube fizemos uma festa. A direção do presídio muito gentilmente encomendou patês, doces e pães; nós levamos bolo de chocolate, pão de queijo e coca-cola. Fazia um calor danado no dia, trinta e tantos graus. Pensando nos preparativos, trouxe de casa três sacolas térmicas, pois sabia da ausência de refrigeração nos pavilhões. As bebidas são servidas na temperatura ambiente e algumas internas estão lá há anos tomando água morna no verão. A caminho da penitenciária, compramos dois sacos de gelo e despejamos os cubinhos nas térmicas com os refrigerantes, que foram soterrados naquelas pequenas geleiras improvisadas.

Chegando lá, discutimos o livro por uma hora, fizemos um balanço do primeiro ano e partimos para o que interessava: os comes e bebes. Naquele momento, a coca-cola estava tinindo, perfeita. Ao ver o prazer das meninas pelo refrigerante gelado, o clima de descontração e a mesa farta de coisas gostosas percebi uma alegria imensa no ar. A festa durou meia hora mas foi suficiente para que eu, a Janine e a Maria Emília saíssemos de lá contagiadas, falando sem parar no trajeto de volta. Chegando em casa sentei no sofá, lembrei do Drummond e reescrevi mentalmente o último verso do “Poema de sete faces”: essas mulheres, essa coca-cola gelada botam a gente comovido como o diabo.

Vanessa Ferrari é editora assistente da Penguin-Companhia e mediadora do clube de leitura na Penitenciária Feminina de Sant’Ana. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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