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Valsa pra lua [ Marcos Vinícus Almeida ]

Valsa pra lua

Tropeça: a perna arreda pra frente, induz o corpo; dedos caçando firmeza na parede, que altiva, não dá retorno; dedos ainda: rapando superfície que cospe areia: e as moedas,  de comprar cigarro alçadas pra cima, girando, elípticas no ar:
caiu; chão: não de cara, pelo menos: joelho e cimento unidos: meio de quatro e de lado: alça da bolsa destratando o pescoço; tornozelo esquerdo posto às avessas: calcanhar pra fora da sandália branca; olha a meia: rasgada até metade da coxa: compraria outra se conseguisse mais um; impossível; não tem como, pensa: as outras, estão nos quartos: nuas, felizes, bêbadas e com a carteira deles ao alcance; sim, àqueles mesmo que chegam tarde e esvaziam doses e doses: pinga? nunca! veneno próprio de agricultor quase em êxtase: distribuindo notas cifradas a qualquer sorriso sujo de batom: safadeza institucional: escambo; duas notas gordas, decote curto e cheiro de sexo fresco entre as pernas; quase feliz respirando o vigor desses coronéis em leilão de gado, vereadores, a saliva, barulhos; ruídos de garganta - ela adora. Uísque, do bom, deleita-se quando oferecem. Dona Júlia esconde um litro na portinha de madeira atrás do balcão do bar, que só a própria tem a chave, a chave dessa zona cheia de agricultores de bolso pesado na sexta-feira. 


Junta as moedas. Ajeita a sandália e acende um cigarro. Vê um Vectra branco dobrar à esquina. Então sorri entorno do próprio eixo achando graça do pensar: imaginara uma espécie de conto de fadas moderno onde o príncipe encantado salta de um Vectra branco de rodas gordurosas; o carro desce a rua de pedra lentamente. Não tem sorte e coragem pra esse tipo de coisa. Como a Gabi, por exemplo, que vendeu a virgindade pra um deputado e mudou-se pra Paris. Fazia questão de mandar e-mails com fotos de cabarés e bulevares. Daquela coisa de ferro apontada pra cima. Gabi não sabe que um dia uma bandeira nazista ficou tremulando lá no alto. Nem conhece Flaubert, Rosseau, Beauvoir ou Sartre. Camus? Não tinha visto “Le Dernier Tango à Paris”. Não sabe de nada. A Gabi é uma anta, estrupício, tonta, lesada: dormiu no comecinho de “Le fabuleux destin d'Amélie Poulain”; e agora anda tranquila pra lá e pra cá na Chans Elisée tirando fotos e mandando por e-mail. Não é justo. Uma quenga encardida como a Gabi, de nariz achatado andando pra lá e pra cá em Paris, e ela aqui abrindo as pernas pra caipiras. A Gabi vai encontrar seu Marlon Brandon com um tablete de manteiga e ela vai continuar nessa faculdade cheias de vacas, dando a bunda, à noite, pra completar sua coleção do Snoopy. Depois da faculdade uma leve transformação na rotina, só da boca pra fora; ah, ela sabe muito bem; aquele curso de francês de 30 horas? Ridículo, frio, entalado estômago: mudo. Sou brega, pensa. Brega como a rua Padre Manoel em Salvador. Preta, puta e ridícula. 
Entra na casa sob a atmosfera vermelha recheada com fumaça. Não cumprimenta ninguém diretamente; todos aos mesmo tempo, sorriso sincero, quase automático: plástico como quadro na parede: daqueles que perseguem todo canto: moldura de carne, ilusão e maquiagem da AVON. Recorre direto à Dona Júlia que de pronto informa que os sujeitos chegaram e estão no quarto esperando. Pai e filho? Irmãos, explica Dona Júlia com sua dentadura esmaltada. O mais novo é virgem. Quinze anos, disseram, mas é mentira. 
Ajusta a cara transparente, santa, rememorando caminhoneiros sujos fedendo  a suor, bebuns desdentados e um mocinho na cadeira de rodas que sofreu de paralisia infantil e que o tio trouxe muitas vezes; sim, muitas vezes: sempre  quarta-feira, impossível esquecer a caixa de bombons Garoto embrulhada em papel celofane; são bonitos pelo menos? Vão ser os dois? Não, pelo jeito o mais velho quer só conferir se o cabra é macho. Um voyer, sem problemas. Eu resolvo essa pendenga. Deixa eu tomar duas talagadas da garrafa do amarinho, que  termino com eles lá em cima em dois palitos. Tem só um resto, nem dá dose direito, minha nega. Tu acredita que revirei uma cambota na hora que tava chegando aqui, mainha? Faculdade hoje foi um saco... Estão no quartinho? É ela agachada perto do amarinho com a garrafa dobrada na cara engolindo mais ar que uísque: ajeitando a roupa ao levantar-se: esquivando-se volátil de um sujeito na escada enquanto os barulhos do bar se afastam. A canção de Amado Batista vindo da caixa de som improvisada no corredor. Quatro portas e ela vai entrar na última. 
— Se ajeita aí, Dininho. Fala oi pra moça. 
— Oi. 
Parece ter uns treze anos o moloque: ombros encolhidos, sentado na beira da cama: de bermuda e chileno de dedo. O outro fuma um cigarro de filtro vermelho  debruçado de costas e com os cotovelos na janela. 
— Olha, esse meu irmão aqui e meio crú no negócio. 
— Não sou nada. 
— Deixa eu falar, Dininho. Assim... Ele não conhece muito dessas coisas. Precisa de aprender, sabe? 
— Hum, sei. Mas se é assim, não é melhor deixar a gente sozinho? 
— Bom... Eu sou Tomé, moça. Sabe como é, né? 
— Olha... Qual sua graça? 
— Edinho. 
— Então, Edinho - puxa o sujeito pelo braço, diz ao pé do ouvido: Deixa seu irmão aqui comigo, que resolvo. Se você for ficar pra olhar, o preço é três vezes maior. 
— Três vezes? Oxê! 
— Tu que sabe, moço. Eu não me importo, não. Pode ficar aí espiando a gente. Mas tem que pagar. E tem outra: o menino vai ficar mais a vontade sem você no quarto. 
Ele olha no decote da moça, olha no moloque. 
— E aí, homi? Não tô por conta não.
— Ô, tá certo. Vou lá pro bar. Mas dá um jeito nesse traste. 
A porta se fecha e quem toma conta é o silêncio. Pensamentos confusos na cabeça do projeto de homem materializados no esfregar das mãos. 
— Não precisa ficar nervoso, mocinho. 
A cabeça do garoto gira dentro da betoneira. 
— Acontece... 
— Pode falar rapaz. Minha especialidade é guardar segredos. Eu sou é estabana. Acredita que cai uma cambota na rua, agorinha mesmo? até rasguei a meia. 
— ... 
— Me ajuda a tirar? 
Meio sem jeito com o olhar complicado no piso, levanta. Ela senta-se na cama, ombros jogados pra trás, corpo apoiado nas mãos pintadas. O menino se ajoelha. 
— Não precisa ficar nervoso. 
— Acontece que eu sou diferente. 
— Todo mundo é diferente, mocinho. Nem gêmeos são iguais. 
A meia calça na mão do menino. As pernas da moça se abrindo devagar elevando um cheiro de hidratante que invade o nariz. Cheiro de banho. 
— Vem. Senta aqui. Que história é essa de diferente? 
As mãos nos cabelos dele feito passarinho no cuidar. E os dedos escorregando por baixo da camisa: acaricia as costas, unhas subindo e descendo de leve sobre costelas ossudas. 
— Eu tenho umas vontades diferentes. 
— Aqui, meu filho. Eu sou cheia de vontades diferentes, sabe? Quero ir pra Paris, acredita? Olha que coisa mais diferente. 
— Paris deve ser legal... E diferente. 
— Não é? É bem diferente disso, com certeza! Ninguém aqui tem vontade de ir pra Paris; quando falo, tiram sarro e riem até não poder mais. Pra você ver como  somos iguais, nós dois temos vontades diferentes. E eu já falei a minha... Então, o senhor, vai tratando de me dizer que vontades diferentes são essas que você tem, ok? 
— É complicado...
— Mocinho... 
Os cabelos aceitam os dedos. 
— Ô... Vou colocar uma música aqui no celular pra animar um pouquinho, tenho uma preguiça de Amado Batista, mas uma preguiça. Deus que me livre.  Cadê a merda da música... Aqui, achei: Comptine Dun Aute Étê... Hum, adoro, adoro, adoro... Não é linda? 
— É. 
— Diz aí, Dininho... 
O menino coça a cabeça; depois ri. 
— Tá rindo do quê? 
— Nada. 
Ela joga-se inteira e sutil pra cima do garoto; que não se esquiva: a camisa sai do corpo devagar enquanto senta-se sobre ele. 
— Tá rindo do quê? Anda.. vai! Tô com o cabelo desarrumado, é? 
A língua cutucando orelha e pescoço. E o carinho macio na barriga: descendo até encontrar algo firme. Mas é o menino que se transfigura. Aperta-lhe a bunda feito  ratoeira, morde igual cachorro, lambe: é um gato. Num minuto estão nus interpretando o profissionalismo animal perfeitamente: e de lado, o moloque treme e solta um gemido mais alto – o urro suíno. Gozar é ter o coração entre as pernas, ela pensa. 
— Tava fazendo charminho, né? Ah, mocinho. 
Mostra os dentes. A cama range e ela, úmida, sem pelos, ergue-se nua ao banheiro; já por dentro, escora a porta sem trancar. Do vidro filtra o som  daquele burburinho tão familiar àquelas paredes. Apanha uma toalha e enfia na virilha. Agora olha-se no espelho e pensa em uísque. O cabelo não armou, mas qualquer coisa passa a chapinha pra chegar no lugar; na verdade, deseja devorar um saboroso bombom. 
Escuta um ruido baixinho vindo quarto. Abre a porta e topa com o menino num choro abafado, num clima esquisito. 
— O que foi, mocinho? 
— Eu sou viado.


Por   Marcos Vinícus Almeida
Publicado na Revista Bula

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