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Foto: Tábitha Esteves
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Oraxo
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira, escreveu Manoel de Barros em Livro Sobre Nada. O nada é ausência de tudo, é ausência de sentido, é o absurdo, é criancice. O nada é o à-toa, o em vão, o inútil. É a desutilidade das máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia de formiga e musgo – elas podem um dia milagrar flores.
Perder o nada é um empobrecimento.
Manoel brinca com a desutilidade poética das coisas, sabe o valor das coisas imprestáveis. Lúdica e pueril, a poesia manoelina é uma brincadeira de criança. Um resgate da inocência e ilogicidade da criança. Como a criança, encanta-se com as coisas pequenas, enxerga exuberância no ínfimo. Descientifica todas as coisas.
“A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá.”
A poesia de Manoel é confusa e sem sentido, de uma linearidade não linear, que se assemelha ao caminho de um carrinho na mão de uma criança, um caminho não programado, imprevisto, que não tem início e não tem fim, que é interrompido quando a criança cansa de brincar, de repente, sem explicação nem sentido. Manoel é a criança que brinca com as palavras. Brincar é fazer poesia. Ser poeta é ser criança.
Assim é sua poesia. Sem lógica, sem sentido e desconexa. Caminha na contramão, foge do sentido, procura o dessaber. Para ler Manoel de Barros é preciso desler. Para o compreender é preciso virar bocó. Ou seja, voltar à infância, desaprender. É preciso olhar as palavras com os olhos castos, puros, virgens da criança. A criança que não conhece o sentido da palavra, a criança que não sabe que as palavras têm sentido. A criança que sorri sem saber o que é alegria e felicidade, que chora sem saber o que é sofrer, o que é dor. A criança que ama sem saber o que é amor.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Manoel atrapalha as significâncias. Dá ser à palavra. Chega ao criançamento das palavras (lá onde elas urinam na perna), a infância da palavra - como a nossa infância -, quando elas não têm sentido nem significado. A palavra avança para o começo, busca a pureza, a inocência, o nada. Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade. A poesia de Manoel descobre a verdade na virgindade perdida das palavras.
A palavra poesia era uma palavra virgem, até encontrar Manoel. Quando o encontrou, a palavra abriu o roupão pra ele e o vestiu. Ela desejava que Manoel a fosse. Desde então, Manoel é poesia.
Oraxo
Sobre o título. Minha bisavó, quando eu era criança, já avançando para sentar na sua cadeira, parava de repente e dizia com um suspiro: Oraxo!... E só então sentava e me levava ao seu colo. Ninguém sabe o que significa esta palavra, talvez nem ela mesma o soubesse (nem sei se é assim que se escreve). Oraxo é uma palavra virgem (até hoje) que pertenceu à minha bisavó (Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desemparada do ser que a revelou.). Minha bisavó dormiu pela última vez (não é eufemismo, ela morreu dormindo) quando eu tinha seis anos. Eu ainda tinha a pureza e a inocência da criança que naquela altura ela havia recuperado. Ela não só criou palavra como criou uma vida, só dela. Fora poeta. Já agora penso que não fora a morte que a viera buscar. Talvez esta palavra, Oraxo, que era tão sua, tenha aberto seu roupão para ela. Minha bisavó deixou de ser Raimunda para ser Oraxo.
Janne Alves de Souza - Publicitária, bacharela em Comunicação Social: Publicidade e Propaganda pela PUC-SP. Pesquisadora intercambista no Curso de Licenciatura em História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal) com bolsa do Programa Fórmula Santander de Mobilidade Estudantil. Artista plástica, desenhista e fotógrafa amadora. Escreve para o site Obvious Lounge no blog: Megalomaníaca (http://lounge.obviousmag.org/megalomaniaca).
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