Tudo o que nós somos é poeira no vento
Nunca fui muito adepto à prática humana corriqueira de se colocar nome de bicho em gente, e nome de gente em bicho. Fracos em criatividade, os índios, além de plagiarem a nomenclatura dos fenômenos da natureza (trovão, tempestade, peido, etc), sempre foram craques neste mister.
Atolados na lama da solidão — ou, ao contrário, despegados, sentindo-se felizes, livres e a salvo do restante da falida humanidade — muitos colocam nomes próprios até mesmo em samambaias. Há quem garanta seja possível se comunicar, em bom e alto tom, com as plantas. Não duvido. Tio Fidelmino, por sinal, conversava com árvores antes de ser diagnosticado com Alzheimer. Criado na roça, primo Anacleto, desavisado do iminente risco leguminoso, apaixonou-se por melancias após fazer amor com uma delas.
Eu suplico: não desistam deste texto. Ele melhorará, tenho fé. E mais: não riam! Debochar do amor é sinal de mediocridade. Quem, entre vocês, por exemplo, não terá utilizado o pegajoso tratamento “docinho de coco” ao se referir à pessoa amada? Eu, que pouquíssimo amo e amei, além de não ser diabético, ainda considero a alcunha deveras ridícula, além de hipercalórica. Da mesma forma, “moranguinho do agreste” soa mal pacas, sem falar no risco que se corre em, ao se comer da “fruta”, acabar intoxicado por agrotóxicos e ressentimentos. Eu confesso: ao saber da predileção do primo pela fruta rechonchuda, nunca mais consegui tomar suco de melancia.
O brasileiro, além de cultivar fama internacional de caloroso e desonesto, adora a jocosidade, ao fazer o estilo “malandro engraçado”. E não é que um espírito-de-porco, municiado com um inconfesso racismo subliminar, batizou o gato preto como Obama, em alusão ao primeiro presidente negro dos Estados Unidos?! Surgido sabe-se lá de onde, o felino foi adotado pela comunidade escolar e se transformou numa espécie de mascote para os alunos, professores e funcionários.
Mas, vocês sabem, a vida é repleta de animosidades, dissabores, descalabros, decepções, e um punhado de tristeza junto. Tudo é relativo, eu sei. Há quem diga que a vida é uma merda. E há quem tenha uma vida de merda, mas não perde a esperança, nem em Deus, nem nos homens, muito menos no acaso.
Por exemplo: para um combatente de guerra, nada mais prazeroso que espatifar com uma bala de fuzil o crânio do inimigo, afinal, é urgente e preciso ganhar logo a porcaria de uma guerra e voltar pra casa. Por outro lado, imaginem só a acurácia, a angústia de um Oficial Médico montando os ossículos como quem junta migalhas, estancando sangrias, remediando, dentro do possível, a tal “perda de massa encefálica”. Dá pra notar o quanto a humanidade perde em credibilidade a cada dia?
Pois é: desde que encontraram a carcaça do velho Obama imersa na caixa d’água, Amauri vomitou três dias e três noites consecutivas. Enojado com a descoberta do falecido gatinho, o bedel Amauri mal se lembrava da cena do bichano descendo do telhado pelas mãos do encanador, começava a salivar e colocava os bofes pra fora.
Sacana de nascença, a cozinheira Severina advertia a todos que, “dos males, o melhor”: ela recordou que, quando trabalhava no manicômio do Governo (por que nunca internam lá os crápulas sanguessugas do Executivo e do Legislativo?!), encontraram o corpo de uma paciente — há dias desaparecida, e que todos julgavam ter escapulido daquele antro fedendo a fezes e rivotril — dentro da caixa d’água. O nojo e a comoção foram gerais, exceto, da parte dos internados, todos eles acostumados às doidices cotidianas e desapegados aos riscos adicionais invisíveis dos micróbios e das toxinas.
O que fariam com o cadáver úmido e esquálido do estimado felino tomou conta de uma tarde inteira de debates na escola. Demonstrando, mais uma vez, leveza de espírito e muita malícia, a hilária Severina sugeriu enterrassem o bichano no quintal do colégio, com as devidas honras de Estado, bandeira a meio pau, e sob a versão embriagada do Hino Nacional na voz da Vanusa.
Indignados com o humor negro da também cozinheira, teve gente que sugeriu aproveitassem o “satisfatório estado de conservação daquele gato-defunto” que permanecera, sabia-se lá há quantos dias, mergulhado n’água, e embalsamassem o pobrezinho, animal queridíssimo das crianças e dos funcionários daquela instituição, colocando-o, por fim, dentro de uma redoma de vidro, ao lado do busto de bronze da ex-esposa do ex-prefeito, a megera que impusera o próprio nome à escola, antes de se divorciar daquele corrupto gestor.
Desantenado às reticências da vida, irritado com tamanho melodrama por causa de um reles felino — o qual se afogara (bem feito pra ele!) dentro da caixa d’água que servia a escola, líquido este em que todos meteram as suas bocas — que, com toda certeza, perseguia um rato (aquela escola e a Câmara Municipal andavam repletos de ratazanas) sob o telhado, o zelador ameaçou chamar ele mesmo o pessoal da Vigilância Sanitária para catar a esqueletizada criatura, e jogá-la dentro do caminhão de lixo, para ser moído, triturado, esquecido para sempre, lixo que era.
Obama, ainda que amado pela maioria dos adultos e idolatrado pela meninada, não passava de ingrediente para lixo (usou este palavreado ao supor que convencia os seus pares com argumentos ateísticos). Plagiou o título da canção “Dust in the Wind”, gravada pela banda de rock progressivo Kansas, em 1977: “Tudo o que nós somos é poeira no vento”. Antes que algum ato de violência se consumasse no recinto, os presentes à cantina puseram o sujeito para sumir, se escafeder, vazar, voar dali que nem poeira no vento.
É sempre pertinente saber o que as autoridades pensam a respeito de qualquer assunto. Afinal de contas, são autoridades e, muitas delas, quase sempre autoritárias, anseiam serem ouvidas, acatadas, admiradas. Tanto assim que a senhora diretora logo entrou no meio da polêmica — as divergências já tomavam um rumo arriscado, aflorando desavenças recentes e antigas, estumando os diferentes a se engalfinharem pelo pobre e morto animal que há muito não miava — a fim de colocar um fim naquela celeuma, e deixar bastante claro qual seria a posição oficial daquela importante instituição pública de ensino.
Ao bem da verdade (ela começou assim o seu hipócrita parecer), de acordo com as normas vigentes e o bom senso (quase nunca vigente), o animal, que surgira na escola, do nada, ainda filhotinho, jamais poderia ter convivido naquele espaço educacional repleto de crianças e catarros, sendo alimentado por meses a fio com os restos da merenda e leite azedo generosamente doado pelos funcionários e alunos.
Confusa com o ineditismo da situação, a diretora quis saber da xistosa cozinheira Severina qual teria sido o epílogo do fatídico episódio da mentecapta afogada, que tipo de providências e encaminhamentos foram tomados à época, quais foram os cuidados com o corpo da vítima, com a água do hospício e com o quadro de loucos, médicos e funcionários.
Nunca se deve dizer “desta água não beberei” (principiou a cozinheira, especialista em defuntos de caixas d`água, abusando mais uma vez da picardia, do cinismo e do sarcasmo). Ela bem que desconfiava do sabor de enxofre da água nas últimas semanas. Aludira ao gosto estranho do líquido aos demais ajudantes da cozinha. Passou a desconfiar mais da água do que das pessoas. Alertou ao zelador. Alertou à diretora. Contou o causo do hospício em que trabalhara, mas ninguém levou a sério. O único a acreditar na possibilidade foi Cornélio, o encanador, o profanador daquele desenxabido túmulo aquático. Dito e feito: o bichano morrera pela boca.
Ela continuou: que os restos mortais do gatinho fossem, então, incinerados no terreiro da escola, com o adjutório de muito fogo e gasolina. Que Cornélio, o encanador desencanado, desse um asseio jamais visto naquele infecto recipiente de amianto, valendo-se, inclusive, de creolina e sanitizantes poderosos. E que todos os demais membros daquela comunidade tomassem lombrigueiros e tento na vida: o que os olhos não veem, o coração não sente; já o estômago...
Amauri não resistiu ao comentário e saiu vomitando pelos corredores. Por causa da incontinência urinária herdade após parir sete filhos, Severina molhou-se de tanto gargalhar. Todos, exceto Obama, reprovaram a pilhéria da cozinheira. Mas, a vida seguiu — e segue — feito poeira no vento.
Fonte:Revista Bula
Eberth Vêncio-Natural de Goiânia, Médico ginecologista, empresário, escritor atualmente dedicado à produção de crônicas para a Revista Bula e Jornal Opção. Membro da UBE-Go.Membro da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores).Vice-Presidente da SOBRAMES. Ex-Presidente da SOBRAMES.Escritor desde os primórdios dos anos 80, várias publicações em livros (antologias),jornais e revistas.Autor do livro de poemas “Faz de conta que somos felizes”,Kelps,1999.Idealizador e realizador do FESTMEDICO (Festival de Artes do Médico Goiano) 08 edições...Outros projetos: Chuva de Poesia, Jornal O Bebum (humor), Jornal Bactéria (Humor), Frota da Poesia, Concurso Kelps de Poesia Falada, Sarau da SOBRAMES, dentre outros.
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3 comentários
Pessoa, amo ler você, ou melhor, ler o que você escreve!
Adorei e ri muito... muito bem contado. Lembrei-me de um caso ocorrido na escola que estudei. Um morador de rua que tomava banho na caixa d'água todo final de semana...
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