Uma cirurgia sem recursos
(Conto escrito baseado em fatos reais)
Por aqueles rincões sem fim não existia nada para curar uma ferida além de parcos recursos fitoterápicos usados na maioria das vezes erroneamente. De ouvir dizer, tomava-se uma por outra, mas como a mente humana é mesmo um segredo sem dimensões aquilo acabava dando certo. Placebos… Quando Deus quer água fria é remédio… sei lá.
Poucos moradores, pouca comida, muito cerrado e muito gado. A casa do dono da fazenda era sempre a melhor de todas e isso não tinha nada de anormal, quem mais tem melhor habita. Mesmo assim isso não subtraía certas faltas como o sal e o remédio. Estes quando faltavam, faltavam para todos.
Caminho de poucas rotas, passagem de poucos transeuntes, de quando em vez se via ao longe a poeira levantada pelo tropeu de cavalos, bois, tropas e gentes. Aqui ou acolá, vez por outra, uma carroça, um carro de bois ou algo com rodas. Bem pouco.
Um dia, debruçado na janela, olhando o por do sol, a maior riqueza do lugar, em meio das andorinhas voadeiras do poente, ele viu chegar a tropa. Muitas carroças cheias de gente. Panos coloridos, cavalos de bom trato. Mulheres de saias longas e coloridas, lenços leves presos nos cabelos compridos e encaracolados, loiros, ruivos ou pretos, de tudo um pouco, gente miscigenada. Homens de cinturões doirados e pesadas corrente de ouro no pescoço, pulseiras reluzentes, goiacas abarrufadas. Eram ciganos ricos. De longe pararam o tropéu e um apenas apeou do seu cavalo e veio vindo devagar à pé. Já bem próximo da casa, tirou o chapéu da cabeça em sinal de respeito e mostrando que chegava em paz. Era assim que se fazia ao entrar em terras estranhas.
O homem que olhava o por do sol também deu um sinal simpático ao mover a cabeça em acordo. Cumprimentaram-se. O forasteiro explicou em breves palavras que se tratava ciganos viajantes e pediam um pouso onde pudessem armar o acampamento e passar talvez um par de dias para descansarem a si próprios e aos animais.
Feitas as apresentações e os consentimentos, o cigano deu o sinal do sim. A tropa se aproximou, o dono da terra mostrou o campo onde se faria o acampamento, ali mesmo perto da morada, onde havia água e lenha abundantes, ali mesmo perto do curral.
Alegres com seu canto e sua dança, vão chegando e enfeitiçando a todos. Naquele mundo de magias tamanhas, nunca faltavam olhares furtivos e curiosos da moçada querendo saber um pouco mais sobre a vida secreta destes andarilhos.
Não que lhes faltassem motivos e fantasias para viver como viviam. Ali tudo era muito simples e ao mesmo tempo profundamente complexo o cotidiano.
Ao raiar do dia antes que o sol saísse por inteiro já nos prados orvalhados pisoteavam o gado e o vaqueiro. Antes que o sol saísse por inteiro já no fogão a lenha crepitava alegre e o cheiro do café era sentido desde a primeira alcova.
Assim era a vida simplória e rica a um só tempo.
Também ali se praticava todo tipo de magia usando ervas e água, fogo e vento, só que o faziam como se fosse reza.
Aos ciganos, a magia dava um ar de mistério, porque era um povo nômade e livres pensadores ainda não enfeitiçados pelo ópio das religiões.
Estava assim a descansar o dono da fazenda quando chegaram e se arrancharam pedindo vênia, os viajantes.
Do riso ao pranto igual criança assim viviam eles pelos caminhos da vida. Tão intensa a emoção e tão forte os sentimentos que estavam sempre a sorrir ou a chorar desesperadamente, por tudo e por nada.
Do cochicho ao grito, num piscar de olhos tudo acontecia. Para eles uma largatixa no caminho era sinal de sorte, ai de quem se tropeçasse numa, era sinal de azar.
A água era tão sagrada que nela jamais cuspiam ou proferiam qualquer que fosse uma palavra herege. Entre o sagrado e o profano também não havia hifem.
Por ali ficaram duas noites e dois dias a vender e comprar cavalos, éguas, vacas e bois. Também compraram galinhas, porcos e patos. Havia uma imensa gaiola dentro de um carro de bois onde levavam os animais que lhes serviriam de alimento no meio do caminho.
Enquanto permaneceram comeram do que havia de melhor, muito peixe e muita caça.
Na fazenda havia engenho de cana de açúcar e uma vez ao ano se destilava o alcool para fazer cachaça ou o purificava para fazer remédios e fogo se fosse preciso.
Era tempo da moenda. Todos trabalhavam muito. Quando a cachaça ficava pronta havia uma grande festa e sempre um boi era motivo de abastança. Muita carne, muito riso e para alguns bem pouco siso.
Foi assim que na madrugada do terceiro dia, o dono da fazenda, homem de bem, esposo amado e amoroso, pai de família exemplar, acordou com uma tal gritaria que só podia estar vindo do acampamento.
Correu até a porta da casa, abriu e sem pensar muito foi logo ao encontro de uma mulher descabelada e em pranto desvairado.
___Mataram meu filho! Mataram meu filho! Gritava ela desesperada.
Ajoelhou-se naquele chão empoeirado e duro e beijando as mãos e os pés do senhor dono da casa lhe pedia aos gritos:
___Socorro! Socorro!
O homem sem saber o que fazer correu pro meio do curral onde o moço estrebuchava com as tripas para fora. Outro cigano o havia traçado na faca.
Se chamava Geraldo Batista o senhor dono da casa.
Naquela madrugada fatídica, totalmente desamparado de conhecimentos médicos ou de qualquer que fosse a técnica de cirurgia, gritou ao seu fiel companheiro de lutas e vida que lhe trouxesse uma bacia com água, uma agulha, tesoura e linha para costurar.
As tripas do cigano se espalharam no chão coberto de esterco de gado pois ali era o curral.
Seu Geraldo Batista olhou pro céu e viu uma luz intensa descer sobre suas mãos e daí pra frente foi trabalhando na arte cirúrgica como se fosse um mestre. Já ia o sol raiando quando terminou o seu trabalho. Os que estavam a sua volta mal podiam acreditar naquilo que presenciaram.
Costurado que estava o homem, as tripas resguardadas, gemendo de dor mas com dignidade nem fazia um ar que fosse de desespero, mas parecia anestesiado.
Os companheiros da viagem o colocaram numa rede e levaram dali para a tenda onde pode descansar por algum tempo.
No mesmo dia, antes do sol se por, levantaram acampamento e se foram todos. Só Deus sabe para onde e porque de tanta pressa. Coisa de ciganos!
Assim dizia o dono daquelas terras distantes.
Os dias se passaram na mesma lida, com os mesmos trôpegos e lentos passos como era comum ao sertanejo. O falatório sobre o que se passou na fazenda foi diminuindo, as pessoas se esquecendo do fato, mas nunca se esqueceu do ocorrido o Sr. Geraldo e seu compadre a que tudo viram e fizeram naquela noite. Vez por outra, em arrepios de medo ou ignorância do fato, falavam baixinho sobre o assunto, numa vã procura de entendê-lo.
Não muito tempo depois, de novo a poeira do caminho se fez presente e de novo uma grande tropa de cavalos de pura raça apareceu na curva da estrada. Eram os mesmo ciganos que voltavam em festa.
Traziam lá das bandas de Uberaba em Minas Gerais, a mais bonita tropa que já se tinha visto.
Apearam todos e num festejo só foram dizendo ao Sr. Geraldo que aquilo tudo era um presente de agradecimento que traziam por haver salvado a vida de um filho querido.
O rapaz em plena forma e com suas próprias pernas veio entregar a tropa.
Mais uma vez a força da lua convidou o povo para a festança e depois de três dias de alegria, dança e comilança, de novo se foram para nunca mais voltar.
Ridamar Batista. Poetisa com experiência em versos soltos e modernos. Leveza e sonoridade, ritmo e doçura. Escreve desde menina. Também tem obras escritas em contos e crônicas que abrangem o cotidiano de maneira suave. Um romance (Desabafo ao Vento) no qual aborda temas polêmicos de maneira clara, aceitando-os com naturalidade e redimindo as mulheres afetadas pelo racismo, e preconceitos imorais. Inédito. Participa de vários sites na internet e trabalha em conjunto com grupos na intenção de melhorar a qualidade humana. Sua biografia está no Google, onde tem quase toda sua obra apresentada. Membro efetivo da Academia de Letras do Brasil, com indicação de sua Presidente atual Vânia Moreira Diniz, Presidente da Academia de Letras do Brasil-Anápolis ALBA, membro da Academia de letras de Anápolis- ANALE, membro da aBrace, membro da AVBL (Academia Virtual Brasileira de Letras).Grafóloga formada pela Escola espanhola de grafologia PSICOGRAF. Livros publicados: “Palavra Perdida” (poemas) e “Enquanto cantam as cigarras” (crônicas).
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