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Você Sofre Por Sua Sanidade [Ariadne Marinho Machado e Wuldson Marcelo]

Você Sofre Por Sua Sanidade


“Aurélia”, de Gerard de Nerval, apresenta-se como o supremo caso da relação arte/loucura e escritura/morte, que encontra na literatura um campo de tensão, angústia e rara beleza. Ao finalizar seu romance em 1855, Nerval cometeu suicídio, enforcando-se em casa. A escrita sustentava uma vida que caminhava no “fio da navalha” entre o delírio e o impulso criativo. O término do processo literário significou o fim da imagem a se construir, da memória que se reconstruía e da ficção que tornava o real um ponto de passagem da demência, um percurso de fluxos e atravessamentos incompreensíveis, retratos de uma edificação narrativa que abolia as fronteiras entre o concreto e o onírico.
“Aurélia” caminha pelas sendas do fantástico, pois que não é o itinerário de apontamentos e percepções psiquiátricas, mas a encenação delirante e sobrenatural de um amor perdido. A loucura do autor (ou seja, sua psicose) expressa o transtorno da produção literária mediante o enigma que criou para si mesma.
 A relação arte-loucura ocorre em idêntico à separação razão e loucura. No processo de racionalização do mundo, que alcançou seu apogeu no Iluminismo, o inconsciente, as sensações, as intuições, uma visão deformada em busca de clarificação eram denegadas, relegadas à segunda ordem na apreensão dos elementos de constituição de um conhecimento possível. A arte que não fosse a expressão da beleza, da harmonia, de um edifício racional estava condenada a ser tachada de bizarra ou de manifestação do germe da loucura. A ela atribuía-se a fealdade como leitmotiv. Mas tal sentença é antiga e segue os traços de um discurso de persuasão e convencimento do que pensou e se efetivou em determinado momento. Na antiguidade a fantasia (a arte) era percebida como um empecilho para a compreensão do mundo. A fantasia não estava incluída no discurso do que seria a verdade. Logo a arte não pertence ao mundo das ideias platônicas, pois que somente o que é racional é real, e apenas o que é real é racional.

Para Platão, o artista é um fabricante de imagens fantasmas que desviam os olhos do cidadão das verdadeiras ideias que só podem ser apreensíveis pelo pensamento. Além disso, a arte estimula as paixões, os afetos e as emoções, tais como a alegria, a tristeza ou a raiva, que deixadas sem controle podem conduzir em última instância à guerra e à catástrofe. A arte só deveria ser praticada por crianças, mulheres, escravos ou loucos, enfim, somente aqueles que não têm nada a perder (Charles Feitosa, Explicando a filosofia com arte, Ed. Ediouro, 2004: 116).

Assim, a arte se tornava entrave para a política. Como fantasia, geração de fantasmas, a arte se associava à loucura, e na loucura a percepção de que haja sabedoria é algo distante, arremessado a esconderijos e abismos que a ocultam ou a diagnosticam para o tratamento mental.
Mas a arte, assim como suas interfaces, sempre caminhou pareada a humanidade, através da comunicação, das interações socioculturais, dos registros históricos e, também, da eterna busca pelo belo e pelo harmônico.  A relevância da literatura, do desenho e da pintura como manifestações artísticas, incide na maneira de como o homem apreende o mundo, e o sofrimento mental ou a loucura refina a córnea ocular, que tem a função de focar a luz da pupila para a retina (e esta reveste a parede interna do globo ocular, além de ser uma extensão do cérebro, que através de células sensíveis à luz, transforma em estímulo físico – energia luminosa – e posteriormente em estimulo químico – impulso elétrico – transmitido pelo nervo óptico até a região occipital do cérebro, onde é compreendido como visão)[1] e desvela outra construção imagética do social, descritas em versos, traços e cores.
O escritor estadunidense Edgar Allan Poe, um perito nos mistérios da mente e na criação de personagens vítimas de alucinações e desespero (e o próprio especula-se era maníaco-depressivo e sofria de transtorno bipolar), disse certa vez que “Resta saber se a loucura não representa, talvez, a forma mais elevada de inteligência”. Há na loucura uma verdade, não uma verdade absoluta ou definitiva, até porque ela é refém de uma instabilidade psíquica que engendra e transforma a contradição e o jogo entre oposições (por exemplo, amor e ódio) em rotina. A modernidade pretendeu normatizar as ações humanas e separa arte e vida, porém essa cisão gerou a nostalgia por algo que está imbricado, que faz parte e constituí uma a outra, ou seja, a proximidade, a relação plena entre razão e loucura, arte e vida.
Os exemplos de artistas que têm suas obras atreladas à loucura da qual foram acometidos, num tenso jogo de paranoias e sensatez, delírios e criação, angústia e reflexão, é bastante extensa. Podemos citar além do escritor Gerard de Nerval, o pintor francês do Romantismo Théodore Géricault (1791-1824), o poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843 – um gênio incompreendido), o pintor holandês Vincent van Gogh (1853-1890), o escritor brasileiro Lima Barreto (1881-1922) e o compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827). À lista poderiam ser adicionados alguns outros nomes, mas o que se mostra relevante não é o simples diagnóstico ou pretensas indicações de uma loucura a ser apurada e decretada como relevante para a materialidade artística. Loucura como conceito para a arte pouco diria da genialidade dos artistas citados, entre outros. A dicotomia razão-desrazão afasta a possiblidade de entender a loucura como patologia influenciando a arte e, também, de uma visão que denuncia à razão como centralizadora e “carcereira” de expressões que fogem a tentação de sucumbir a uma beleza sustentada apenas em seu apuro técnico e visual. As obras do pintor espanhol Francisco de Goya (1746-1828), como “Saturno devorando um filho”, da série “Pinturas Negras”, estão carregadas de melancolia, destruição e intenções políticas. Alimentam-se da fealdade do mundo, do inconsciente e de certa composição bizarra do real. São frutos da tristeza e não da loucura, mas estão eivadas das construções que erguemos para representá-las.
E a loucura como inspiração da arte, encarnada na orelha decepada de Vincent Willem van Gogh, filho de pastor, que nasceu em Groot – Zundert, na Holanda, em 30 de março de 1853, fora visto como “rebelde, inclinado à solidão e antissocial”, o qual, na verdade, era acometido de um sofrimento mental, advindo da dureza de uma vida regrada e dos diversos enfrentamentos que os desafia na busca por cuidado e solução de suas inúmeras mazelas. Com o espírito aprisionado num exercício existencial incrível, às vezes exaustivo e insuportável, conviveu de maneira fatigante e penosa com o sofrimento psíquico, e somente em seu último decênio de vida (trabalhou com a arte, ou seja, dos 27 anos aos 37 anos), cansado de calar o grito, “berrou” a arte de desenhar paisagens, pessoas e naturezas mortas com pinceladas bruscas, porém pequenas, marcando o impressionismo do início do século XX.

“Não, Van Gogh não era louco, insiste Artaud neste texto inspirado, ou então ele era no sentido desta autêntica alienação que a sociedade ignora, sociedade que confunde escrita com texto (em que qualquer coisa escrita é corpo, desenho, teatro), ela que tacha de loucura as visões exortadas de seus artistas sufoca seus gritos no “papel impresso”. Assim calaram Baudelaire, Edgar Allan Poe, Gérard de Nerval e o impensável conde de Lautréamont. Porque tiveram medos de que suas poesias saíssem dos livros se revertessem a realidade” (ARTUAD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade,  José Olympio, 2003:14.)

As diferentes formas de ver e apreender o mundo nunca foram um exercício fácil para os gênios, principalmente porque a psiquiatria diagnostica muitos deles como portadores de transtornos mentais, as angústias, os desesperos de suportar a vida em seu tempo (talvez em qualquer tempo). Vincent van Gogh é um dos exemplos mais conhecido dessa realidade, tinha uma lucidez “não convencional”, enxergava o mundo não pelos objetos disformes pela sua retina, e sim através das cores primordialmente amareladas e verdeadas em leves tons de marrons, abundante em seus quadros.  A qual, a medicina dispõe apenas com uma “ridícula terminologia, digno produto de seu cérebro deteriorado”. Tendo vendido apenas um quadro em vida – para seu irmão (Van Gogh carinhosamente chamava-o de Théo) –, morreu na miséria, após uma fracassada tentativa de suicídio no campo Auvers sur Oise, onde disparou um tiro contra o peito. Conseguiu retornar à pensão que estava instalando, morrendo dois dias depois, nos braços de Théo.

Em desalinho,
Desalentado na estação da vida empacou.
A pouco desengana-se 
Desajustado então é novo: Parto!
Um selo em desespero,
Um gesto em desapego.
Firmeza do olho: Perplexo!
em outras paragens.
(Eliete Borges Lopes, Scarlet e o Branco, Editora Multifoco, 2012: 53)

Então o que é a arte? O que é a loucura? Ambas foram tantas vezes aprisionadas em definições, porém nenhuma delas pôde dar a satisfação de modo pleno. Picasso, certa vez, disse: “A arte é a mentira que nos ensina a ver a realidade.” Compreendendo assim que a arte é uma maneira individual de “ver- olhar” a realidade. Enganamo-nos na medida em que o sentido está no mundo das ideias, apreendida através das palavras, das cores, dos traços que as represente como o real.
E talvez, como diz a canção interpretada por Don McLean “Vincent”, que fala sobre a vida, a obra e a incompreensão experimentada por Van Gogh, o sofredor mental, acusado de causar distúrbios, incômodos e expressar desrespeito está à frente do cotidiano e das aspirações que vivem em sua época, por isso a realidade lhe é sufocante, pálida e repleta de obstáculos à criatividade: “E como você sofreu por sua sanidade/ E como você tentou os libertar/Eles não queriam ouvir/Eles não sabiam como/Talvez eles te ouçam agora”.



[1] http://www.dayhorc.com.br/saibamaissobre/descolamento-de-retina.aspx


Ariadne Marinho Machado é mestranda em História na UFMT. Graduada em História (UFMT) aprecia artes plásticas e poesia, em especial, Vincent Van Gogh e Pablo Neruda.   
         
Wuldson Marcelo, corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979, em Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação em Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos e autor de dois livros de contos que estão entre o prelo e o limbo, “Obscuro-shi” e “Subterfúgios Urbanos”.

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