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Febre do Rato [Wuldson Marcelo]

Febre do Rato
“Febre do Rato” (2012), a obra-prima de Cláudio Assis, é um libelo, uma celebração e a tour de force de um cineasta que comprova que domina o universo que engendra. Em uma Recife que exala beleza e todas as vicissitudes da vida, que evapora e se recria, que sobrevive como triunfo que um dia sonhou ser (e ainda sonha), Assis faz de seu filme um libelo contra um cinema burocrático, descerebrado e insensível do atual cenário brasileiro e contra uma vida paralisante que cerceia a liberdade, subtrai os instintos e vigia a sexualidade. E é, na mesma medida, uma celebração da contracultura, da resistência em forma de poesia e do prazer que cada poro do corpo pode descobrir e sentir.
Febre do rato é um termo surgido após o surto de leptospirose que assolou Recife na década de 70, e que também indica um estado em que alguém se encontra “fora de controle”. Mas como perder o controle?
Zizo (Irandhir Santos, em estupenda atuação) é um poeta marginal, das margens do rio Capibaribe, dos seus odores e influência, que recebe os detritos de uma cidade que jorra sua indiferença, seu consumo, seus desejos obstruídos. Zizo declama, conclama, convoca uma visão política dos rejeitados sociais que precisam conhecer os arpões que os ferem, que são atirados à distância para evitar o contato com as vítimas. E é justamente essa distância que Cláudio Assis inicialmente nos apresenta. A câmera viaja em um travelling sobre o rio Capibaribe e um poema corta o ar, como se fosse o próprio rio ou um canto que o purificasse, exibindo suas entranhas, desvelando a cidade, dando a tônica de um toque dissonante, de um caso de sensibilidade à flor da pele dos mais belo e eufórico do cinema recente. “Abismo de coisas medonhas [...] Enfeites de cores errantes [...] Mundo abismo, grande mundo [...] Gritos de não para o meu abismo mundo”.
Zizo é um poeta marginal, libertário, que prega a consciência social extraída da própria miséria em que as pessoas são lançadas. O seu tabloide-manifesto poético destila o furor dos desvalidos e a nobreza da resistência, que se faz anarquismo, apetite, amor e fome de viver. A inquietação do poeta se transforma em enfrentamento ao gozo brochante, falsificado, ilegítimo das caixas-registradoras da elite, que com seu jogo de apropriação indébita da vida, nega a distribuição do prazer e condena o corpo, as sensações, a intuição, a irracionalidade dos sentimentos mais intestinais, a afetividade transbordante. Para Zizo, como no poema de Leminski, o erro é fundamental. Rabiscou Leminski, “Nunca cometo o mesmo erro duas vezes/ já cometo duas três quatro cinco seis/ até esse erro aprender/ que só o erro tem vez". Zizo é um poeta errático, mas com um projeto: a liberdade e a expressão de sentimentos e dos desejos que os corpos emanam. E é um escritor com um local, com um público, com uma comunidade que o admira, quase como uma tertúlia, cujos participantes ouvem, não compreendem inteiramente, mas aprovam e se regozijam com os versos que são partilhados. Partilhar é uma palavra que se molda aos frames da película. Partilhar o êxtase, o desespero pelas interdições sexuais ou sociais, a vontade de tornar o brado da periferia o eco que resgatará o mundo daquilo que ele nunca foi e não pode ser: vazio. É a inventividade que conta e Cláudio Assis a cria pela poesia, que está nas palavras que escorrem da boca de Zizo e nos enquadramentos dimensionados e consagrados pela beleza estonteante da fotografia em preto e branco de Walter Carvalho.  Ela está presente também no amor inconcebível pela ordem moral, contudo verdadeiro e propenso à estabilidade dos romances de casais de cinema que vêm e vão em suas atribuladas relações, de Pazinho (Matheus Nachtergaele) e o travesti Vanessa (Tânia Moreno), pois passam por todas as etapas dos amores cinematográficos, do arrebatamento à traição, à reconciliação, até o rompimento que fica entre o inevitável e a possiblidade do reatamento. Neste ponto, a ousadia está em revelar o que aspira ser comum (já que a fidelidade é tratada como algo de sumo importância para o casal) com uma união condenada pelos bons costumes.
As outras relações são mais livres, pois há uma mulher dividindo uma cama com três homens e Zizo só se relaciona/faz sexo com mulheres maduras, ou seja, que já entraram na menopausa, mas querem o calor de um corpo e as sensações do coito. No entanto, a rebeldia poética de Zizo e sua vida afetiva repousada na tranquilidade do não envolvimento sentimental se defrontam quando conhece Eneida (a linda e talentosa Nanda Costa). Eneida dá um sabor diferente ao Recife caótico, que está em atrito, corrompido, porém repleto de um poder de atração que move a poesia de Zizo. Eneida, nome de uma guerra (epopeia latina em doze cantos escrita por Virgílio, no século I), tira dos trilhos o poeta ao recusar fazer sexo com ele. A libido negada atiça a sensibilidade e cada recusa de Eneida é pretexto para um mergulho mais profundo na poesia que nasce da alma e do corpo de Zizo. A recusa dela é a liberdade do corpo, que não se manifesta apenas na efetivação do prazer, mas também em impor um não. Não ceder aos apelos do corpo em um filme no qual a nudez é retratada com tanta naturalidade é um paradoxo, mas é o contrassenso que inaugura a “febre do rato”.
O sexo na obra de Cláudio Assis fora retratado em “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas” sem a mediação do amor. No primeiro, o sexo era ingrediente de uma fisiologia que arbitrava em nome de um poder individual, de demonstração de força e a busca de limitar um quadrante de atuação, mesmo que patético. Os homens usam o sexo como domínio que efetiva esse desejo de poder. As mulheres se utilizam dele num contexto diferente: Kika, a personagem submissa ao marido, torna o sexo desforra contra essa submissão e manifestação de todos os desejos tolhidos durante a relação em que aceitou (por diversas razões) negar a latência de uma sexualidade alijada pelos deveres puritanos. Já Lígia, a dona do bar, sente a rotina e o assédio dos clientes em apalpadelas maliciosas, e então ela constrói a vagina como seu espaço, do qual dispõe como quiser. E a exibição de sua genitália em público em provocação a um personagem é constatação da confirmação dessa possibilidade de poder. Em “Baixio das Bestas”, o sexo é a exploração dos deserdados do mundo contra outros deserdados do mundo, essencialmente contra as mulheres, objetos-alvo da perversão naturalizada, e observado como imagem. É a violência como dado cultural, como humilhação e barbárie normatizada pelo cenário social.  Na Recife, que ainda é exploração e sexualidade, exibida em “Febre do Rato” as relações se dão à flor da pele, mas a mudança está em que o amor por mais que seja carnal, a sua anarquia, ou seja, o “fora” da ordem, está na amizade, no desejo, no prazer que se tem e que se dá. Logo, os relacionamentos são tecidos de modo distinto aos filmes anteriores. E o amor é um misto de desejo carnal e romantismo, arrebatamento e sedução no encontro entre Zizo e Eneida. A jovem se recusa a transar com o poeta, o que instala nele a “febre do rato”. Como escreve Georges Bataille, em “As Lágrimas de Eros”: “A essência do homem, seja ela embora denunciada na sexualidade – que é sua origem e começo – põe-lhe um problema que só tem por saída enlouquecer”. A perturbação de Zizo é poesia, perturbação por Eneida, que alega não gostar da sua poesia. É e justamente esse desprezo afetivo que aumenta o seu desejo. Como musa, Eneida e o seu corpo podem ser representação e, por isso, ela “tira cópia” de seu corpo desnudo e envia ao poeta, que se masturba ao compô-lo parte por parte. E Eneida por ser corpo, é uma musa que faz sexo, mesmo recusando ao poeta: ela participa de um ménage à trois com o casal mais livre do filme e se masturba com a poesia do poeta ao qual nega entregar o seu corpo. Se por um lado, há a febre, do outro há o controle. E em “Febre do Rato” as mulheres dão e recusam o que querem.
E no tempo diegético de Assis as ruas são tomadas pela poesia e o grupo de Zizo, no 7 de setembro, dará seu recado. E o poeta encontrará sua musa, que estará pronta para compreender seu universo, e conhecerá o furor da repressão policial, da chamada Lei e Ordem, que não tolera o desnudamento como forma de expressão da vida, pois os corpos devem ser vigiados, suas culpas sancionadas e qualquer erupção do contrário reprimida com violência e apontado como descalabro moral.
Cláudio Assis realiza com seu lirismo o rompimento com a vida ordeira da sociedade hodierna do consumo e do sucesso a qualquer preço. A fuga da vida que nos é permitida pelas autoridades que, como diz Zizo, querem dizer o que devemos fazer, ocorre de maneira hipócrita, com censuras, certo desregramento, mas dentro da reputação necessária para ser alguém nesta droga de vida. Mas, em “Febre do Rato”, o que conta é o desejo e a beleza do desejo, o sexo e a beleza do sexo, a resistência política-poética e a beleza dessa resistência. A cidade é suja, as pessoas caminham rumando para um futuro corretamente falsificado pelos ensejos liberais de sucesso ou condenadas pelo descaso e abandono, mas a autenticidade de “Febre do Rato” é a possibilidade de liberdade em meio aos grilhões forjados diariamente.  Segundo o filósofo Charles Taylor (A Ética da Autenticidade, Realizações Editora: São Paulo, 2011, p. 94), “Se autenticidade é ser verdadeiro para nós, é reconhecer nosso ‘sentimento de existência’, então talvez só possamos alcançá-lo integralmente se reconhecemos que este sentimento liga-nos a um todo maior”. Zizo com seus poemas sabe disso, e conclama o ser humano a se integrar a natureza (criação, instinto, corpo, amor) e aos desideratos mais sublimes e alucinados que somos capazes de sentir, implodindo, dessa maneira, o status quo e toda manutenção de um mundo que é monotonia e morte da criatividade.          

Wuldson Marcelo, corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979, em Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação em Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos e autor de dois livros de contos que estão entre o prelo e o limbo, “Obscuro-shi” e “Subterfúgios Urbanos”.

Um comentário

Agnes Torres disse...

Parabéns pela brilhante crítica!