Acabou
– Olha só... É melhor a gente parar por aqui! –
anunciou, tirando o guardanapo do colo e jogando-o com força em cima da mesa.
– Como assim, Dorinha?
– Que parte você não entendeu? Acabar, romper,
terminar... Esse nosso relacionamento não tem mais futuro!
– Mas por quê? Que papo é esse? O que foi que eu fiz?
– Você sabe, Gilberto! Ou será que não sabe? Se não
sabe... É pior ainda!!!
– Poxa, eu só tomei um gole do teu suco... UM GOLE! É
tão grave assim?
– O último gole do meu copo! Me trouxe nesse
restaurante e tomou... – agora estava gritando – O ÚLTIMO GOLE!
– Não seja por isso... Eu peço outro! Garçom... –
levantando o braço.
– Não adianta! – interrompendo-o – Não é a mesma coisa!
Eu não quero um copo cheio... O meu estava no finalzinho! Você sabe que eu
gosto de deixar o finalzinho de suco no copo pra terminar junto com a comida! É
que nem o petit gateau: o sorvete vem com o “bolinho” na porção certa... A
gente vai comendo e calculando... comendo e calculando... tem que terminar
junto!
– Então eu peço outro suco e tomo até sobrar só um
finalzinho! Aí eu te dou... O que acha? ãhn? ãhn? Resolvido?
– Não é a mesma coisa, Gilberto! – cruzando os braços
em protesto – O “meu” finalzinho do suco é aguado na medida certa, por causa do
gelo que foi derretendo durante a refeição. Se você pedir outro copo e tomar de
um só gole, sabe o que vai acontecer? O finalzinho não vai ficar igual! E você
sabia disso! – fazendo um beiço que antecede o choro. – Sabia e mesmo assim
tomou!
– Então eu espero o gelo derreter! – apelou, com as
mãos na cabeça.
– Mas aí acaba a comida e eu não tomei o último gole
junto! Acabou, Gilberto! Hoje, ao chegar em casa, faça suas malas!
– Mas meu amor...
– Não me chame mais de “meu amor!” – com os olhos
molhados – Eu não sou mais o seu amor, se eu fosse o seu amor você não teria
tomado o último gole do meu suco! – limpando as lágrimas que escorriam.
– Você só pode estar brincando...
– Mais um suco? – pergunta o garçom inadvertidamente,
aproximando-se ao perceber o copo vazio.
– Sim, por favor! – ele implora.
– Nãaaaao! – ela protesta – agora é tarde.
– Tarde? Não senhora, a cozinha ainda está funcionando
– argumenta o garçom, sem saber onde estava se metendo ou entender o que estava
em jogo naquele momento.
O Gilberto tenta apaziguar:
– A senhora ainda está pensando... – avisou.
– Eu não sou mais sua senhora! – anuncia a Dorinha,
tirando a aliança.
O garçom, atônito, ainda arrisca:
– Então posso recolher o copo, senhorita? – sugere o
coitado, com um sorriso profissional.
– Não toca no meu copo! – avisou a Dorinha,
fulminando-o com um olhar tão ameaçador que o fez se arrepender da profissão
que escolheu. O pobre homem se retirou sem nem se virar, caminhando de costas e
pedindo licença muitas vezes.
– Dorinha...
– Nem vem, Gilberto! – Você pode dizer tudo, menos que
eu não sou compreensiva. Eu já perdoei muita coisa vinda de você, até os casos
que você teve eu fiz de conta que não vi... No fundo, eu sempre achei que
independente de qualquer coisa, você gostava era de mim... Mas se você toma o
último gole do meu suco é por que não se importa mais comigo! Aí não tem
jeito... É por que acabou mesmo!
– Poxa, Dorinha... Pensa bem no que você vai fazer! Eu
acho que tenho crédito contigo, ou não?
– Uhmmm – torceu o nariz como quem diz: sei não!
– Lembra quando você fez plástica no nariz e teve que
andar quase um mês com aqueles esparadrapos no rosto? Todo mundo te olhando e
achando que você tinha sido atropelada por um caminhão desgovernado... Quem foi
que aguentou firme do seu lado segurando a sua mão o tempo todo, hein? Hein?
– A minha mãe!
– Como você é ingrata, Dorinha!
– Ingrata? Você dizia que eu estava parecendo o irmão
mascarado do Speed Racer! O corredor “X”...
– Veja bem... – respirando fundo – Fazemos assim: nós
repetimos o prato, que, aliás, está uma delícia. Eu peço outro suco... – já
fazendo sinal para o garçom – aí a gente conversa... você toma um gole... nós
namoramos um pouquinho... você janta devagar... e no final dá tudo certo: você
termina seu novo suco junto com a comida que resta!
– Uhm, não sei não... – ela resmunga – Isso não era pra
ser tão discutido. Só é gostoso quando é espontâneo! – Mas ele já estava servindo
mais uma porção de arroz, carne e molho no prato dela, enquanto o garçom, pé
ante pé, trazia mais um copo de suco.
O plano saia como previsto, até que ela caiu no choro
vendo-o terminar de servir seu prato.
– Que foi agora, Dorinha? – olhando em volta, tentando
achar o que estava errado.
– Sou sempre eu que te sirvo, Gilberto... Sirvo as
crianças, depois sirvo você...
– Pois então, hoje sou eu que vou te servir! – abrindo
um sorriso amarelo.
– Você não sabe quem eu sou! Estamos casados há quinze
anos e... simplesmente você não me conhece!!!
– Como não te conheço?
– Não me conhece! Sou uma estranha pra você!
– Como assim, Dorinha?
– Olha o meu prato!
– Pus muito?
– Não é isso, você colocou o molho em cima da carne!
– E não era?
– Nãaaaaaaaaaaao... Eu gosto em cima do arroz! – caindo
novamente no choro – do arroz, Gilberto, do arrooooozzzz!
Jean Marcel-
Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois
adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas,
romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
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3 comentários
Que figuras ! Divertido como sempre. E tão real! Detesto que tomem o rostinho dos meus copos. Fico irritada! Kkkkkkkkk quando fumava, era o fim do cigarro. Último pedacinho de pão, última garfada combinada... Demais! Momento especial de risada no diálogo com o garçom. Muito bom!
Puts, só agora aprendi a ver os comentários aqui. Cinthia, Opinião sua tem peso dobrado pra mim...
JEan
Kkkkkkkkkk Jura?! Antes tarde...
Adorei esse texto! Tudo seu é bom demais!
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