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Névoa [Edelson Nagues]

Névoa


Eles estão perto. Logo nos alcançarão. O peso dos ruídos corrompe a densidade do ar. Impossível enxergar cinco metros à frente, muito menos atrás. A camionete avança na velocidade possível pela trilha escorregadia. Ela arfando (pelo menos ainda respira, penso), bombeando sangue no banco já encharcado, em fluxo regular. Da boca, ao desritmo dos solavancos, um fio de baba grossa e pegajosa move-se pra um lado e outro. As mãos, sobrepostas, esmagando o terço contra o peito. O crucifixo escapando por um vão dos dedos.

“Você vai ter seu filho de volta, eu prometo.” A voz forçando firmeza, no dia anterior. Os olhos dela pintaram um arco-íris. Apesar dos riscos sabidos, era preciso forjar uma possibilidade. Ela apertou o terço contra o peito esperançoso.


Em repouso merecido, a arma no banco de trás, esvaziada das crias. Os pneus gastos deslizando no ventre da cobra de escamas avermelhadas. À esquerda, o paredão com seu abraço negro preparado; à direita, o precipício sabido, mas não delineado.


“Vocês devem chegar lá à tardinha, quando ainda dá pra ver o movimento dos capangas sem serem vistos. Lanternas ou faróis, nem pensar. É morte na certa!” O guia nos olhava como se já mortos, fotografando-nos com as retinas esmaecidas. Nas mochilas, sanduíches de mortadela e queijo, barras de chocolate e folhas de coca desidratadas. Dois cantis com água salobra e um com aguardente barata, que depois seria usada na tentativa inútil de desinfetar os ferimentos. “Espero vocês no acampamento, até o meio-dia.” O tom de voz o traía: sabia inútil a espera, se é que houvesse.


Os dois pontos de luz difusa crescem no retrovisor. Ela, de olhos fechados, parece pressentir. Ou talvez ouça o barulho do motor. Num aparente esforço, estica os olhos na minha direção, sem mover a cabeça, como se implorasse conforto. O movimento dos lábios denuncia a oração. Reze também por mim, penso em dizer, mas com certeza soaria falso. No painel quebrado, a seta vermelha do marcador de combustível teima em buscar a letra “E”: condenação em língua estrangeira. Os filhos-da-puta acertaram o tanque!, praguejo em voz alta, como num último ato de resistência. Sem desespero, porém. A proximidade do fim não traz surpresa. “Se pegarem vocês, estarão mortos.”


Afundo o pé direito com raiva e recebo um coice do volante. O motor ruge como animal pego nas ferragens da armadilha. Olhos abertos, ela já não vê. Na íris, o arco do limpador do para-brisa marca o compasso do tempo que me resta.


Do livro "Humanos" - (Scortecci Editora)



Edelson Nagues (nome literário de EDELSON RODRIGUES NASCIMENTO) é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. É poeta, escritor, revisor de textos e servidor público.É autor dos livros Humanos (coletânea de contos premiados) e Águas de Clausura (de poesia, vencedor do X Prêmio Livraria Asabeça), ambos publicados pela Scortecci Editora.É membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (de Cachoeiro de Itapemirim/ES) e mantém (ou tenta manter) o blog pessoal www.senaoescrevodoi.blogspot.com.

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