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Selarón, o mestre da fragilidade [José Castello]

Selarón, o mestre da fragilidade

Não escrevemos só com palavras. Os sonhos, os devaneios, os pensamentos, até mesmo as dores são formas secretas de escrita. Podemos "ler" uma tela, uma escultura, um filme, uma sinfonia _ até mesmo a face de uma pessoa. Podemos "ler" uma escadaria. Basta pensar, com o coração partido, no pintor e ceramista chileno Jorge Selarón, que acaba de ser arrancado do mundo de maneira brutal e imperdoável.

Há poucas semanas, na Lapa, visitei pela primeira vez a Escadaria Selarón. Não conseguia ir embora.Era noite, ela estava povoada de jovens que bebiam suas cervejas e tocavam seu violão. De gente que a admirava e consagrava.
De turistas boquiabertos. Todos de olhos cheios de felicidade. A arte da rua costuma sofrer grande descrédito. Tendemos a acreditar que ela é feita "por acaso", sem uma verdadeira "intenção artística", e outras tolices. E assim a desprezamos. O que é também um ato de crueldade.

Pois a Escadaria Selarón me provocou um grande e belo susto. Ali, sob a luz da lua e das luminárias de rua, aquela profusão de azulejos, vindos de todas as partes do mundo, compõem _ como costumava pensar Adolfo Bioy Casares _ uma "síntese cósmica". Não apenas um resumo de nosso (adoentado) planeta, a bela Terra, mas uma síntese de tudo o que vemos, sentimos e experimentamos. Uma síntese do humano. Um caminho possível para o homem.

Essa noite, ainda sob o choque do assassinato de Selarón, sonhei que subia
novamente a escadaria. Estava sozinho. Ela estava vazia. E eu tinha a sorte, então, de me encontrar com Selarón, que trabalhava sereno a um canto. Perguntei-lhe em que se inspirava para montar sua escadaria. Ele me respondeu, eu me lembro bem: "Olhe a lua. Observe a lua. Veja como ela está distante, mas pode ficar tão perto".

Sei que a frase foi exatamente essa porque tenho a mania de anotar, no meio da noite, em um Caderno de Sonhos, os sonhos que mais me impressionam. Não sei se publicarei, um dia, esse caderno. Eu o escrevo só para mim _ e aqui destoo de Selarón, que compunha sua escadaria sobretudo para os outros. Sonhos podem ser belos, mas não são arte. Ou são? Não sei responder, a pergunta sempre me atiça, e fico sem uma resposta. Mas a Escadaria Selarón é, sem dúvida, uma forma de arte. De grande arte. E, é verdade: como a lua, ela nos ilumina.

Estivesse em Barcelona, e já teria sido tombada, protegida, cuidada. Para Selarón é tarde, mas não para nós: por que não fazer isso _ para valer! _ agora? Ela se tornou um símbolo não só da arte, ou do Rio de Janeiro, mas do amor intenso e desinteressado à beleza. À arte que pode, sim, ser feita a céu aberto. A arte que, uma vez concluída, não pertece mais ao artista, mas aos que a "lêem" e devoram. Aos que a sobem.


Agora somos os donos da Escalaria Selarón. Digo "nós" porque, embora viva em Curitiba, cidade que aprendi a amar, sou antes de tudo um carioca. Não nasci na Lapa, mas no Rio Comprido.Cresci em Copacabana, em um tempo em que bons meninos não iam à Lapa, terreno das prostitutas e dos proxenetas, governado pela figura perturbadora de Madame Satã. Bom lembrar de madame: eis outro símbolo do Rio completamente esquecido.Merecia uma estátua, talvez à entrada da escadaria, ou quem sabe bem à frente dos Arcos.
Ou será que essa estátua já existe e eu não sei? Há tantas coisas que não sabemos... É delas que a arte se alimenta: da ignorância, que só acessamos passo a passo, como uma escadaria.

O mundo é tão grande _ uma escadaria, dizia Bioy Casares, pode ser, "é" um cosmos. Um homem, um só homem (Selarón) é todo o cosmos. Perdemos sempre a dimensão disso. Achamos que somos pequenos e frágeis e desinteressantes _ e somos mesmo. Achamos que nada somos _ e, de fato, nada somos. Contudo, esse nada _ uma migalha, um fiapo de homem, uma escadaria _ é tudo o que temos. Por isso reverencio Selarón, o grande mestre do frágil. Sua figura nos fica como a lembrança de que a beleza é delicada e sutil. Sua escadaria, como um caminho mágico de acesso a nós mesmos.

José Castello -Jornalista e escritor, colunista do caderno Prosa, de O Globo, autor de "Vinicius de Moraes: O poeta da paixão" (Companhia das Letras, 1993), "Inventário das sombras" (Record, 1999) e "A literatura na poltrona" (Record, 2007), além de "Ribamar" (Bertrand Brasil, 2010, prêmio Jabuti de melhor romance de 2011)

Um comentário

Anônimo disse...

A arte realmente pode mudar o homem. Pena que, como na fábula da serpente e do vaga-lume, o brilho mágico de algumas almas costuma incomodar outras almas, não tão iluminadas. Aplausos José Castello. Aplausos mestre Selarón.