SEM DESPEDIDA
As borras do café mal passado bailavam no interior da xícara sem demora, sem pensar. Ela olhou as horas, fechou os olhos e o choro não veio. O som do trombone desafinado em poropopós invadiu sua mente em lembranças. Parábolas de sua pobre infância.
A garrafa de cachaça envelhecida com raízes e sementes desconhecidas, pousada no chão, ao lado da geladeira; o vestido de missa, único, com o babado sujo de lama do último passeio ao parque; a barraca na quermesse anual com suas prendas e guloseimas sem igual; as discussões entre os pais sobre orçamento doméstico e as mágoas jogadas na cara, tudo arrebatou ainda mais sua dor de perda. Não. Não tinha perdido um indício de identidade, de sobrenome, de vida beirando à miséria e ao pecado de desejar um futuro que não poderia lhe pertencer. Respirou muito fundo, mesmo assim o choro não veio.
Buscou mais um café na simbiose do corpo com o tempo sem sentido. Pensou em renegar a aritmética dos anos em comunhão com uma alma que respingava os odores, brigas vespertinas e invernos calados com uma única sopa. Dias seguintes incógnitas. Conformou-se em seu presente.
Distância. Eram mais de mil quilômetros que a separavam do despedir e de vê-lo pela última vez (última vez?) inerte, prostrado sob as flores imaginárias que costumava trazer-lhe aos 7 anos. A última vez que o vira foi em um natal (não se lembrava há quantos anos). Ceia, frutas, parentes e um parênteses na fartura invertida da metáfora familiar. Dos três dias, reservou 15 minutos para uma visita. Com as mãos trêmulas, presenteou-o com um livro. Ele nem sabia que ela escrevia.
Olhou as horas, o borrão de café na xícara e respirou bem fundo. Tanto quanto desejaria estar e ter que viver aquele momento. Não se arrependeu do vazio, da ausência ao velório, do adeus que acreditava não existir. O relógio marcava 16 horas. O caixão estava sendo fechado.
(Oficina de Contos, com Nelson de Oliveira, em Jaraguá do Sul/ SC aos 20/08/11)
Maria de Fátima Venutti ou simplesmente Fátima Venutti. Paulistana de Osasco. Reside em Blumenau desde dezembro de 2002. Formada em Letras, escreve desde os 11 anos. Pág. na internet: Fátima Venutti.
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